Roberto Ramírez
Introdução
Nos primeiros anos da década de 90, se aglomerava em Havana uma fauna muito particular: gente que se apresentava como jornalistas, escritores, “politicólogos”, “cientistas sociais” e coisas do gênero. Estavam ali para não perder o último episódio do “fracasso do socialismo”. Ou seja, o remake em Cuba e em espanhol, da mesma série já rodada em russo, polonês, húngaro, romeno e outros idiomas do falecido “Império do Mal”.
Voltando da ilha escreviam artigos e livros com títulos tais como “A hora final de Castro: a história secreta por trás da iminente queda do comunismo em Cuba”1. No entanto, a história os desmentiu. O que eles chamam de “comunismo” não caiu de imediato, nem mesmo Fidel Castro chegou à sua “hora final” nesses momentos.
Cuba passou vários anos de terríveis dificuldades e penúrias somente comparáveis às dos países que sofreram uma dura guerra. Mas, para surpresa do mundo, não seguiu imediatamente o mesmo curso da ex-URSS e dos países do leste europeu, nem tampouco da China, apesar do colapso econômico/social que significou perder a ajuda e as relações comerciais com os primeiros e, pouco depois, o incremento substancial do bloqueio econômico do imperialismo ianque.
Nesses anos, não somente a União Soviética, mas todos os países da Europa e Ásia, que na segunda metade do século XX se autodefiniam como “socialistas”, estavam em plena restauração do capitalismo. Alguns, mudando o antigo regime político de maneira mais ou menos evolutiva e pacífica (Hungria, Polônia) ou violenta (Romênia). Outros, como China (e logo Vietnã), mantendo o regime político do PC como partido único, a bandeira vermelha e (cada vez menos) as invocações rituais ao “socialismo”, contudo vertendo ao capitalismo com uma eficácia e decisão ainda maior que seus pares europeus2. Em Cuba, depois de alguns primeiros passos orientados no segundo sentido, tudo ficou “em suspenso”.
Hoje a situação econômico/social da ilha aparece como qualitativamente menos crítica que a do início dos anos 90, quando não era descabido temer um colapso. Deste modo, ainda que o imperialismo ianque venha reforçando o bloqueio causador de severos danos, o isolamento econômico e político de Cuba são substancialmente menores e a economia tem saído do quase colapso do início dos anos 90.
Hoje, tanto na esquerda como na direita, e dentro e fora da ilha, é consenso que Cuba está numa encruzilhada. É chegado o momento de encarar os problemas e dilemas “em suspenso” há quase 20 anos.
A palavra aludida a isto – “transição”- se presta a confusões, mais ainda no charlatanismo da mídia. Por um lado significa muito – que há mudanças em curso e expectativas nesse sentido – mas, ao mesmo tempo, significa pouco, pois essa “transição” pode ter variantes muito diferentes.
Washington, por exemplo, montou há vários anos um “Comitê para a Transição em Cuba”, que elaborou um cadastro milimétrico do território da ilha para devolver tudo a seus antigos donos, burgueses cubanos ou estrangeiros. Além disso, no nível político, já ditaram normas que teriam, de fato, feito Cuba regredir às épocas da Emenda Platt 3. Ou seja, a um virtual “protetorado” dos EUA. Outra variante muito diferente de “transição” é a transferência das diversas funções de Fidel Castro, principalmente a seu irmão Raúl. Há, então, transições e transições.
As expectativas e debates a respeito da “transição” aparecem muito relacionadas a uma circunstância pessoal: a idade de Fidel Castro, motivo pelo qual foi obrigado a se retirar da condução diária do estado cubano e da atividade política em geral (exceto seus breves textos difundidos com o nome de ”Reflexões do Comandante em Chefe”. A avançada idade de Fidel e seus graves problemas de saúde abrem também a perspectiva do seu falecimento. Ou seja, a questão da “transição” aparece estreitamente ligada com, e inclusive motivada por, essa situação pessoal do “Comandante em Chefe” ou “Líder Máximo”.
Desde um ponto de vista marxista “vulgar” seria possível desprezar as dimensões disto com o argumento abstrato de que o curso da história se decide essencialmente por fatores “objetivos” e não simplesmente por indivíduos. Não obstante, seria pouco marxista essa subestimação. Pelo rol e o lugar que ocupou – e ainda ocupa – no processo cubano, antes e depois da revolução de 1959, o relevo e o possível desaparecimento de Fidel Castro são fatores primordiais, com capacidade para acelerar ou desencadear processos de transformações e até da explosão de contradições e tensões acumuladas na sociedade cubana.
Isso vai definir rumos que podem ser positivos ou negativos para os trabalhadores e as massas populares, o que coloca, por conseguinte, uma luta que decida finalmente qual será o signo dessa “transição”. Assim, o desenlace vai ter importantes repercussões, no sentido revolucionário ou contra-revolucionário, em escala latino-americana e mundial.
Cuba se encontra então numa encruzilhada. Que caminho tomar? A resposta vai se dar inevitavelmente numa luta política, na qual já estão se expressando diferentes interesses e forças sociais, tanto dentro como fora da ilha.
Até hoje, parecia que nessa encruzilhada somente se abririam dois caminhos: Um defendido a partir de Miami pela burguesia cubano/americana e seu patrocinador, o imperialismo ianque: o de um colapso político-social do regime, que supostamente lhe permitiria voltar triunfalmente à ilha. O que não ocorreu no final do século XX, mas a princípios do XXI. Este curso implicaria não somente na restauração do capitalismo, senão também na perda da independência nacional conquistada pela revolução.
O outro é o apresentado há tempos como o modelo chinês. De conteúdo, consiste em que a casta burocrática que administra o estado cubano, encabeçada pelos especialistas militares que estão à frente das joint ventures e outros setores dinâmicos da economia, marche, em primeira instância, para um capitalismo de Estado, sob o qual inevitavelmente iriam se abrigando formas de capitalismo privado. Por isso não é casual o coro de elogios à China e seu modelo de “socialismo” que se faz publicamente desde essas alturas. O suposto “socialismo” chinês teria êxito em contraste com o fracasso da ex-União Soviética. Então esse caminho, ainda que por caminhos diferentes, conduz ao mesmo ponto que o anterior: a restauração do capitalismo, ainda que com outros beneficiários.
Também não podemos excluir que se dêem distintas formas de combinação com ambas as alternativas. Um fator decisivo a esse respeito seria uma mudança de atitude dos EUA. Há setores importantes (ainda que minoritários) do capitalismo norte-americano que já não partilham a política do “tudo ou nada” da burguesia cubano/americana. Vêem, além do mais, como seus sócios/rivais da União Européia e Canadá têm obtido muito mais com um enfoque negociador.
De qualquer modo, sob diferentes formas, o curso para a restauração capitalista implica para a classe trabalhadora cubana, um salto enorme na desigualdade social, a exploração e a perda de conquistas históricas da revolução – já bastante maltratadas – em primeiro lugar, em matéria de Saúde e Educação.
Nessa encruzilhada sustentamos que é possível (e necessário) uma terceira variante: que entre em cena outra grande força social existente: a classe operária e trabalhadora. Os trabalhadores assalariados – em especial os trabalhadores produtivos – têm interesses objetivos radicalmente distintos aos da burguesia gusana de Miami e também aos das cúpulas burocráticas que anseiam ser como seus pares da China, ou seja, milionários. Claro que esta alternativa tem menos publicidade, mas tem uma base social real: os trabalhadores, que são a imensa maioria da ilha, estão nos pontos-chave da economia e têm assim, potencialmente, a força para impor seus interesses.
Mas destacamos que isso, até agora, é somente potencial. Desse gigante somente se ouvem débeis murmúrios e através de mediações, por exemplo, os estudantes que, a partir de posições socialistas, criticaram a crescente desigualdade social e os privilégios4. Esse e outros fatos têm uma imensa importância, pois abonam a possibilidade de que surja, finalmente, uma vanguarda que comece a expressar conscientemente os interesses da classe operária e de todos os trabalhadores.
Não é novo nem casual o silêncio político da classe trabalhadora cubana, que seria lógico no capitalismo, mas não num Estado que supostamente é seu, um Estado que muitos ainda (principalmente fora de Cuba) caracterizam como “socialista” e/ou “operário”.
A classe trabalhadora – pelas mesmas peculiaridades do processo revolucionário e do estado que se estruturou depois da revolução, que analisaremos extensamente adiante – tem sido a convidada pró-forma nos giros de 180° dispostos de cima para baixo, muitos dos quais tiveram consequências danosas. A famosa palavra de ordem de Comandante em Chefe ordene! Não foi uma metáfora, senão a realidade do funcionamento do estado e do regime, e além do mais um dado fundamental para definir sua natureza social, como veremos. Ainda que as “ordens” de cima se davam em nome do socialismo, dos trabalhadores e do povo, por baixo, à classe operária somente cabia apoiá-las incondicionalmente. Ou seja, cumprir essas ordens. Em baixo, não correspondia debatê-las democraticamente nem propor alternativas, ainda se estivessem enquadradas na luta contra o imperialismo e o capitalismo.
Hoje praticamente não está em cena o Comandante em Chefe que impunha ordens acatadas e cumpridas sem chiar. Se agora a classe operária não toma a palavra, outras classes e setores sociais decidirão o rumo, de acordo com interesses próprios, opostos aos seus. Já o estão decidindo!
A possibilidade de uma terceira alternativa – nem restauração estilo Miami, nem restauração estilo Pequim, via capitalismo de Estado – tem a imensa força de que se assentaria nos interesses da classe trabalhadora. Mas simultaneamente, tem a colossal debilidade de que essa classe chega à era “post Fidel” sem uma ginástica de pensamento, organização e ação independentes e, sobretudo, de democracia operária. Assim mesmo, num grau difícil de medir, a classe trabalhadora cubana está sofrendo os mesmos processos de atomização individualista que marcaram a derrubada do pseudo-socialismo na ex-URSS e no leste5.
Não obstante, com todos seus prós e contras, não há alternativa senão lutar para que o objetivo da classe trabalhadora deixe de ser a de convidada pró-forma na hora de decidir o rumo nestes momentos transcendentais. Não existe outra força social que possa garantir uma alternativa socialista perante as pressões restauracionistas de dentro e de fora. Os trabalhadores conscientes, os estudantes e intelectuais que sejam autenticamente socialistas – que rechaçam a recolonização via Miami, mas também as crescentes desigualdades e privilégios que estão pavimentando por outra via a volta do capitalismo – têm a possibilidade de lutar por isso, desenvolvendo em primeiro lugar uma vanguarda da classe trabalhadora que comece a ser sua voz .
Assim, perante a restauração tipo Miami ou a restauração tipo China, não há alternativa exceto a de que seja a classe operária que assuma realmente o poder. O novo “Comandante” a dar as “ordens” tem que ser a classe trabalhadora, debatendo e decidindo democraticamente. Isso seria sinônimo de uma nova (e imprescindível) revolução cubana.
Neste trabalho vamos tratar então a presente situação de Cuba, fato impossível de encarar seriamente sem voltar às origens, ou seja, as características da Revolução Cubana de 1959 e às transformações políticas e sociais que gerou.
Isso nos remete a um debate teórico e histórico mais global: o balanço das grandes revoluções do século XX, especialmente as ocorridas depois da Segunda Guerra Mundial, como é o caso de Cuba, tema que tratamos à parte nesta mesma edição.
Nossa corrente, Socialismo ou Barbárie, sustenta que o relançamento da luta pelo socialismo no século XXI exige “passar a limpo” essa colossal experiência da luta de classes. Examinar rigorosamente porquê, em certo momento, o capitalismo chegou a ser expropriado na terceira parte do planeta y poucas décadas depois, voltava em quase todos esses países que se rotulavam como “socialistas”, com exceção (relativa, e hoje em perigo) de Cuba.
Este balanço histórico e teórico/político não é um tema arqueológico. Toca vivamente as grandes questões estratégicas da luta pela revolução socialista no século XXI. Aqueles que pretendam evitá-lo ou abordá-lo recitando como Pai-nosso fórmulas trilhadas, tampouco poderão localizar-se perante os novos acontecimentos da luta de classes. São problemas vivos e concretos, como por exemplo, qual posição tomar perante propostas como o “socialismo do século XXI” de Chávez.
É por esses motivos de fundo que Socialismo ou Barbárie tem desenvolvido uma extensa elaboração a respeito das experiências e lições que nos legaram as grandes revoluções do século. Nesse sentido, remetemos o leitor aos números 17/18 e 19 da nossa revista. Neste texto retomaremos a problemática em relação a Cuba.
1) Cuba, um curso histórico excepcional
“Essas ilhas são o apêndice natural do continente norte-americano, e uma delas [Cuba]… por uma enorme quantidade de considerações, se converteu em um objeto de transcendental importância para os interesses políticos e comerciais da nossa União. (…) Olhando para frente… é difícil resistir à convicção de que a anexação de Cuba à República Federal será indispensável para a continuidade e integridade da União. (…) Cuba, fortemente separada da sua conexão antinatural com a Espanha, e incapaz de se sustentar por si mesma, só pode gravitar para a União Norte-americana” (Carta de 23/4/1823 de John Quincy Adams, secretário de Estado e logo presidente dos EUA).
“… já estou todos os dias em perigo de dar minha vida por meu país e pelo meu dever… de impedir a tempo com a independência de Cuba que se estendam pelas Antilhas os Estados Unidos e caiam… sobre nossas terras da América. Tudo quanto fiz até hoje e farei, é para isso… impedir que em Cuba se abra, pela anexação dos imperialistas de lá e os espanhóis, o caminho, que há de chegar, e com nosso sangue estamos chegando, da anexação dos povos da nossa América ao Norte revolto e brutal que os despreza… Vivi no monstro, conheço suas entranhas e minha Honda é a de David” (José Martí, carta inacabada de 18/5/1895, um dia antes de morrer em combate).
As raízes da “excepcionalidade” da Revolução Cubana há de procurá-las no curso histórico também excepcional da ilha comparada com o restante da América Hispânica.
Junto com a menor, a ilha de Porto Rico – hoje colônia direta dos EUA sob o eufemismo de “estado livre associado” – Cuba foi a única região do Império Espanhol que não se tornou independente. Quando finalmente as tropas espanholas se retiraram de lá, foi somente para serem substituídas pela ocupação militar dos EUA, vencedor da guerra de 1898 com a Espanha. Cuba, tal qual o previu Adams, tinha finalmente “gravitado” para a bolsa dos EUA.
Por que o Império Espanhol, expulso de todo o continente pelos movimentos de independência, conseguiu conservar seu domínio em Cuba? O decisivo foi a atitude das elites cubanas (proprietárias de engenhos e plantações de cana, comerciantes, servidores, padres etc.) que em grande medida, diferentemente do continente, não eram partidárias da independência.
No continente, as elites crioulas de fazendeiros comerciantes, banqueiros e funcionários decidiram se livrar da tutela colonial de Madri, seguros de que eles seriam os herdeiros dessa troca. Foi uma revolução puramente política, que deixou essencialmente intactas as anteriores relações de exploração encima das quais se assentavam.
Especialmente no caso da América do Sul, a cruel derrota dos movimentos revolucionários prévios – principalmente de Tupac Amaru (1742-81) – tinha esvaziado o perigo de que a revolução política da independência se transformasse em revolução social das massas de índios, negros e outros explorados.
A revolução social do Haití
No Caribe acontecia o oposto. Em 1791, estourou a revolução dos escravos do Haiti, colônia francesa, as portas mesmo da ilha de Cuba. A partir de então, se sucederiam longos anos de lutas vitoriosas dos “jacobinos negros” contra as tropas da França e outros países que pretendiam voltar a submetê-los.
No Haiti não foi somente uma revolução política pela independência, como no resto da América Latina, senão uma revolução social dos escravos negros contra os escravistas brancos (tese defendida, entre outros, pelo historiador Luis Vitale).
Logicamente, isto aterrorizou as classes dirigentes da vizinha Cuba, que era como Haiti, uma “economia de plantação” produtora de açúcar para o mercado mundial através do trabalho escravo. O temor de que uma revolução política de independência desencadeasse uma revolução social antiescravista, que varresse o núcleo central das classes privilegiadas, inclinou a balança em favor do Império Espanhol, que logo e sempre contou com o apoio de um forte setor não somente das classes altas senão também de setores brancos médios, que em grande parte eram sua “clientela”. Isso se estendeu ao longo de todo o século XIX, inclusive depois que a escravidão foi parcialmente abolida em Cuba em 1880 e por completo em 1886.
Não obstante, nos inícios do século XIX aconteceram as primeiras rebeliões contra a Espanha, que iriam in crescendo e que custariam centenas de milhares de vidas. O decrépito imperialismo de Madri, ainda que cada vez mais débil, pode resistir às duras penas. Fazendo um balanço de uma das rebeliões fracassadas (da década de 1840), um historiador chega a uma significativa conclusão: “Era possível mobilizar os brancos pela independência e os negros pelo fim da escravidão, mas não era possível colocar ambos para trabalharem juntos.
Os brancos temiam o fim da escravidão e os negros não estavam muito interessados na independência. Os negros olhavam para o Império Britânico, que tinha liberado os escravos na Jamaica em 1834. Os brancos agora olhavam em direção oposta, para EUA, onde os proprietários de escravos ainda governavam no Sul” (Richard Gott, Cuba. A New History, sublinhado nosso).
Em Cuba surgia um novo fenômeno político que, sob diferentes formas, ainda perdura: os anexionistas. As classes dirigentes da ilha não se dividiram simplesmente em partidários ou inimigos do domínio espanhol. Surge um setor que já não defende a independência. Um intelectual da época, José Antonio Saco, resume assim: “Não tem outra solução que atirarmo-nos nos braços dos Estados Unidos”… A “eloquente visão expressada por Saco, forte nos EUA e em Cuba, jamais desapareceu do debate político cubano” (Gott, pp 56ss., sublinhado nosso). Efetivamente, seus ecos seguiram ressoando na ilha até 1959 e logo nas ruas de Miami.
Guerras de independência e intervenção dos eua
Nas últimas guerras de independência e seus altos e baixos – Grito de Yara e Guerra dos Dez Anos (1868-78), Pacto de Zanjón (1878), Protesto de Baragua (1878), Guerra Chiquita (1879-80) e Grito de Baire (1895), que inicia a derradeira Guerra de Independência – ficaria claro o emaranhado de tensões e discussões sociais, raciais… e de projetos contraditórios para depois de ter mandado embora os espanhóis, como os anexionistas, por um lado e o que sustenta Martí, por outro.
Mas o processo em curso da última guerra de independência contra a Espanha que se livra a América Latina é bruscamente cortado em 1898 pela intervenção dos EUA. Depois de duas fáceis vitórias, Cuba, Porto Rico, Filipinas e outros despojos do antigo Império passam diretamente a mãos dos EUA. Os cubanos, que tinham lutado durante décadas pela independência – ao de preço 200 mil vidas na Guerra dos Dez Anos e 250 mil na última contenda – nem sequer são convidados na Conferencia da Paz em Paris. E nas colunas dos legendários mambises, aos heróicos lutadores pela independência, o grandioso ocupante norte-americano proíbe entrar e desfilar triunfante por Havana: podiam perturbar aos burgueses brancos que estavam trocando de amo imperialista.
Num cruzamento original de etapas históricas, o fim do centenário Império Espanhol marca a irrupção no século XX do mais novo e poderoso imperialismo. Cuba se livra do colonialismo espanhol somente para cair, sem solução de continuidade, nas mãos do jovem e voraz imperialismo ianque.
Cuba é ocupada pelas tropas de EUA e em Havana se estabelece a ditadura militar de um governador designado por Washington, o general Leonard Wood, que durará até 1902. Enquanto isso, em Washington se discute o que fazer com Cuba. Contra os desejos de numerosos anexionistas, tanto norte-americanos como burgueses cubanos, Cuba não é diretamente anexada como Porto Rico. Prudentemente, em Washington se impõe um modelo expressamente inspirado na dominação do Império Britânico no Egito, onde formalmente existia um “governo” egípcio, mas com guarnições de tropas britânicas que garantiam sua boa conduta6.
A independência inconclusa: Cuba, virtual protetorado dos EUA
Em Cuba, o “modelo” consiste na “cessão” aos EUA da base de Guantánamo e sobre tudo a Emenda Platt, um texto incorporado na grandiosa Constituição de Cuba que, entre outras clausulas infames, estabelece o direito dos EUA a supervisionar as finanças do novo estado “independente” (ponto A) e a intervir militarmente para garantir “a manutenção de um governo adequado” (ponto B). Este último não fica na teoria: EUA manda suas tropas de 1906 a 1912, em 1912 e de 1917 até 1923.
Para completar o quadro cubano depois da “independência” da Espanha, a maioria dessas intervenções foi feita a pedido de algum setor da mesma burguesia cubana. O resto das classes dirigente latino-americanas não tem brilhado precisamente pela sua independência em relação com o imperialismo ianque, mas a atitude da burguesia cubana constitui um caso extremo. Isto será um ingrediente importante no que sucederá nas duas grandes revoluções que sacudirão Cuba no século XX.
Assim mesmo, os anos de governo militar ianque implicam muito mais: os capitais norte-americanos, despejados sobre a ilha foram apoderando-se de terras, engenhos, serviços públicos… Poucos anos depois, “Cuba transformou-se no produtor de uma imensa riqueza, cujas atividades as companhias norte-americanas e investidores individuais estavam profundamente envolvidos. Banqueiros e comerciantes, proprietários de plantações e engenhos, operadores de trens e simples investidores, todos olham para os EUA a fim de protegerem seus interesses. Cuba se converteu numa colônia em tudo, menos no nome” (Gott, pp. 110ss, sublinhado nosso).
Porém, ao mesmo tempo, para o século XX, se transferiram também, quase sem solução de continuidade, as tradições e formas de ação de décadas de lutas sangrentas e guerras pela independência que ocuparam o século XIX, como a tradição das rebeliões internas e as expedições revolucionárias desde o exterior, tomar em armas e partir com um punhado de homens na selva, com um caudilho à frente e com uma viva consciência de honra, a rebeldia e o sacrifício da própria vida… mas assim mesmo com uma extrema imprecisão sobre o programa e os objetivos a longo prazo.
Tudo isso que literária e politicamente expressou tão bem o romantismo modernista de Martí, se transladaria ao século XX numa poderosa corrente política: o populismo (Sam Farber, The Originals of the Cuban Revolution Reconsidered, pp. 34ss; Gott, pp. 84ss.). Meio século depois, em julho de 1953, seu caudilho, o jovem advogado Fidel Castro Ruiz, preparava-se para entrar em ação.
2) 1933: A derrota da primeira Revolução Cubana
O primeiro terço do século XX não significou para Cuba somente uma mudança de amo –Estados Unidos – e de organização política – a República da Emenda Platt – senão também de uma vasta transformação econômico-social. Até meados da década dos 20, Cuba experimentou um crescimento notável da produção e exportações. Entre 1900 e 1925, sua principal produção, o açúcar, multiplicou-se 17 vezes. Assim mesmo, houve um crescimento pujante da mineração, trens, eletricidade etc. Foi um crescimento somente interrompido brevemente pela crise da bolha especulativa do açúcar em 1920-21, depois da Primeira Guerra Mundial (1914-18) (Farber, The Origens…).
Desenvolvimento desigual e combinado
Não obstante, esse crescimento de algumas ramas não somente tinha pés de barro, senão que escondia o profundo atraso e vulnerabilidade da economia cubana tomada no seu conjunto. Era mais um caso do típico “desenvolvimento desigual e combinado” nos países semicoloniais da “periferia” do capitalismo, porém no caso de Cuba, levado ao extremo.
Efetivamente, Cuba limitava-se a seguir com seu caráter de grande mono-produtora de açúcar para o mercado mundial, que tinha desde fins do século XVIII. Mas para continuar com isso, o grande capital proveniente de EUA incorporava técnicas mais modernas de elaboração e transporte, que provocavam esse crescimento fenomenal da produção (cf. De Riverend, Historia econômica de Cuba, pp. 216ss.). Para agravar as coisas, à mono-produção se foi agregando posteriormente a estreita dependência com o comprador número um do produto: Estados Unidos.
Essa extrema dependência na venda do açúcar ao mercado norte-americano e mundial e seus preços determinariam não somente um efeito multiplicador das crises que vinham de fora (como a iniciada em 1929-30), senão também graves dificuldades para aproveitar momentos de auge econômico mundial. Assim, até meados dos anos 50, já nas vésperas da revolução, o signo da economia “desde a depressão [de 1930], era uma relativa estagnação ou, no melhor dos casos, um crescimento lento” (Farber, cit., sublinhado nosso).
Assim mesmo, a amplitude avassaladora que tinha a mono-produção de açúcar impedia a diversificação em outros ramos e implicava graves deformações da economia e da vida social. Além do altíssimo desemprego rural, em parte estacionário pelas safras, que repercutia logo sobre as cidades, a extensão dos canaviais e terras de reserva requeridas dificultavam o desenvolvimento de outros cultivos e crias. Assim, em um país de terras cultiváveis se dava o paradoxo de ter que importar boa parte dos alimentos.
Novas e velhas classes
Este desenvolvimento capitalista depois da independência – com profundas desigualdades e deformações e além do mais com uma sujeição colonial econômico e político quase absoluta dos EUA – teria de colocar seu carimbo em todas as classes da sociedade, no Estado e nas relações sociais e políticas em seu conjunto.
O desigual desenvolvimento do capitalismo implicou, em primeiro lugar, a aparição e crescimento da classe operária moderna. Junto com ela, elevam-se também setores de classes médias, tanto de pequena burguesia independente como franjas assalariadas e desenvolveu-se uma burguesia cubana, em parte continuação das elites anteriores a independência e em parte novos ricos com uma porção proveniente da nova imigração européia. Os Castro são provenientes precisamente desse novo setor.
A moderna classe operária, que começa a se constituir desde os princípios do século, enfrenta e reflete as condições especiais que impunham a estrutura, o atraso global e as incertezas da economia cubana.
“Estas características da economia cubana afetaram substancialmente a conduta dos trabalhadores. As virtuais eliminações das relações não capitalistas de produção para a subsistência e os meios relativamente avançados de comunicação e transporte criaram uma classe operária urbana e rural que era moderna em certos aspetos fundamentais. Os trabalhadores cubanos eram geralmente sóbrios, rápidos para aprender e com uma saudável dose de respeito entre si. Enraizaram a pontualidade, o baixo número de faltas e outras formas de disciplina industrial. A classe operária urbana e rural foi também bastante sindicalizada (chegou a 50% na década de 50) e combativa. A causa da instabilidade econômica, o substancial desemprego e a insegurança das aposentadorias, os trabalhadores priorizavam a segurança no emprego e as reclamações políticos nesse sentido” (Farber, cit., pp 22ss.).
A nova classe operária e sua combatividade jogariam um papel central na primeira revolução cubana do século XX. A raquítica burguesia cubana estava marcada, por um lado, pelo peso esmagador do capital norte-americano e, pelo outro, pelas pressões de uma combativa classe operária que, como veremos logo, a partir da revolução que derrubou a ditadura de Machado em 1933 arrancou conquistas que foram depois excedendo a capacidade de uma economia instável, estagnada ou com crescimento lento.
Esse “clima… também influenciou os capitalistas cubanos. Uma mentalidade de agiota afetou amplos setores das classes endinheiradas e desalentava os riscos e os empreendimentos… os bancos cubanos tinham uma considerável liquidez e o capital cubano mostrava uma acentuada tendência a ir embora do país ou a amontoar-se em investimentos imobiliários ou especulativos… [com] uma aversão aos investimentos de longo prazo [e]… a investir na indústria” (Farber, sit., p.23).
Isto implicou também que, como em outros países semi-coloniais, entre o peso, a combatividade da classe operária e o conservadorismo e limitações econômicas da burguesia, somadas as pressões do imperialismo, o Estado teve que assumir um importante papel de intervenção e regulações.
Fora destas duas classes fundamentais, abria um leque de condições sociais muito heterogêneas, também determinadas pelos problemas estruturais críticos da economia cubana, as características deformantes da monocultura açucareira e a estagnação. Além dos setores pequeno-burgueses rurais e urbanos, de contornos mais precisos, o sistema tendia a deixar por fora uma massa “popular” da cidade e o campo, onde tinha todo tipo de situações de pobreza, trabalho informal etc.
As correntes de esquerda: populismo e marxismo stalinizado
Nesse contexto, já nos anos 20 começam a tomar forma as duas grandes correntes da esquerda que, com múltiplas mudanças e altos e baixos, se prolongaram até 1959: o populismo e o Partido Comunista.
A classe operária moderna em Cuba já tinha começado a desenvolver suas primeiras lutas e organizações. No final do século XIX e início do XX acontecem algumas greves. A “primeira grande greve no açúcar [aconteceu] em outubro de 1917, por aumentos salariais e pelas 8 horas de trabalho… a Confederação Nacional Operaria Cubana (CNOC) foi criada pelos anarquistas em 1925” (Gott, cit.). No marco da aparição deste novo ator social na ilha, que seria um dos grandes protagonistas da revolução de 1933, a enorme repercussão mundial da Revolução Russa influi na fundação do Partido Comunista em 1925.
O primeiro PC cubano foi fundado por Julio Antonio Mella – a grande figura do partido, orador e carismático dirigente estudantil7 – Carlos Baliño e José Miguel Pérez, que seria seu secretario geral. Baliño era um “veterano marxista que esteve junto a José Martí na fundação do Partido Revolucionário Cubano em 1892, criador de um Clube de Propaganda Socialista em 1903” (ver Pérez Cruz, “A propósito do artigo Julio Antonio!… até depois de morto”).
O PCC, embora tenha surgido no movimento estudantil e na intelectualidade, dirigiu logo o centro da sua atividade para o movimento operário e sindical, onde angariou importantes posições na CNOC. O nascimento do PCC coincide com a aceleração do processo de degeneração burocrática da União Soviética e da estalinização da III Internacional e os partidos comunistas em todo o mundo. Como não podia ser de outro modo, o PCC foi moldado por essa situação, que implicava em primeiro lugar, acatar cegamente as orientações ditadas por Moscou. Como veremos logo, isto o levaria a sucessivos desastres no cumprimento das políticas ordenadas por Stalin do “terceiro período” (1928-34) primeiro e da “frente popular” depois8.
A outra grande corrente histórica, mais ampla que a marxista, foi o populismo. Heterogênea e não centralizada, foi um movimento aluvial com variedade de correntes ziguezagueantes, organizações, líderes e programas nunca bem definidos. Nas décadas que precederam a revolução de 1959, o populismo cubano – como em outros países de América Latina- produziu de tudo: líderes e partidos políticos que terminaram como absolutamente burgueses e pró-imperialistas; grupos lúmpens e gangsteres, especialmente no movimento estudantil; organizações radicalizadas e combativas muito mais a esquerda etc. Porém, o populismo cubano gerou algo que não repetiram as correntes semelhantes do continente: uma corrente, Fidel Castro e o Movimento 26 de Julho, que expropriou o capitalismo.
Em Cuba, como em todo mundo, o populismo no nível de suas direções, nasce geralmente em setores da pequena burguesia e das ambíguas “classes médias” e trata de fazer pé com setores mais “populares”. Essas localizações sociais “intermediárias” são a base tanto da sua ampla heterogeneidade como de seus ziguezagues políticos.
Não obstante, seria um desacerto, no caso de Cuba, dar por resolvido com a abstração de que se tratava de uma “corrente pequeno-burguesa”, como fazem alguns. É o erro frequente de dar por finalizada a análise quando esta apenas começa.
O caráter “pequeno-burguês”, que geralmente tem o populismo é uma das verdades abstratas que logo, no concreto, não explicam grande coisa… e menos ainda no caso de Cuba, sua falta de rumo na revolução de 1959. Por isso mais adiante voltaremos a esse ponto, que é uma chave primordial tanto para compreender as características peculiares que assumiu em Cuba como para definir o caráter da revolução e do regime.
Nossa primeira observação é que os populismos (a diferença das correntes que se reclamam marxistas) não se referenciam numa classe social explorada, a classe operária, senão antes de tudo no “povo” em geral e na “nação, na pátria, etc. Essa “ambiguidade” de classe do populismo movimenta-se com sua imprecisão programática (outra diferença com o marxismo).
Na América Latina, as variantes “de esquerda” do populismo muita vezes expressam reação perante as pressões do imperialismo desde franjas minoritárias da burguesia, das classes médias e inclusive de setores do mesmo aparelho do Estado. Logicamente, o interesse destes setores não é expressar essa confrontação em termos de classe, senão do “nacional” e o “popular”, ou seja, a noite é negra onde todos os gatos são pardos. Estas ambigüidades não somente servem para velar a presença de interesses de classe distintos e contraditórios, senão também e mais que tudo para que a classe operária não jogasse nessas confrontações um papel independente que poderia tornar-se hegemônico.
No caso especial de Cuba, esses rasgos haveriam de ressoar com força multiplicada por causa do caráter inconcluso e malogrado que tinha tido a sangrenta luta pela independência. Em apenas uma geração de distancia, os temas do populismo nascido (ou renascido) nos anos 20 eram continuidade dessa viva tradição, em especial da vermelha por sua figura mais radical (e anti-ianque), José Martí: “Os fortes elementos de estoicismo e romantismo no pensamento de Martí ficaram fixos na tradição populista cubana, que frequentemente via a firme dedicação, o sacrifício e o heroísmo como virtudes auto-suficientes na dura esfera da ação política, em particular da ação revolucionaria” (Farber, cit., pp 36ss.).
O auge do populismo, seja de direita ou de esquerda, tem a ver geralmente com situações de crises econômicas, sociais e políticas e sobre tudo de mal-estar e descontentamento generalizado em todas as classes da sociedade (ainda que isto se expresse de formas diferentes segundo de quem se trate). Um de contentamento que não alcança ser canalizado nem pelas forças políticas burguesas “tradicionais” e “orgânicas” nem pelas que se reclamam da classe trabalhadora. Assim serão também em Cuba os dois grandes picos do populismo, marcado pelas revoluções de 1933 e 1959.
Por último, nos movimentos populistas, a liderança assume também formas especiais e de fundamental importância política.
Nos séculos XIX e XX, as relações entre os grandes movimentos políticos e sociais “modernos”, de esquerda ou de direita, partidos etc. e de suas direções têm sido extremamente complexas e contraditórias. Dentro disto, o mais subjetivo dos fatores em jogo, o “fator direção” é um elemento de primeira ordem em combinação com os mais “objetivos”.
Mas, neste contexto, a liderança populista – sobretudo na sua versão latino-americana, a do “caudilho”- tem traços próprios e importância sem igual. Com o risco de simplificar, poderíamos dizer que a experiência dos séculos XIX e XX indica que os partidos e movimentos (e suas direções) que se apoiaram diretamente nas classes fundamentais da sociedade – os capitalistas ou a classe trabalhadora – e sobretudo os que se basearam na democracia operária, tem sido qualitativamente mais “orgânicos” que o populismo. Por isso, o peso se suas direções, ainda que primordial, tem sido também muito mais “mediado”, através de instituições e “regras do jogo” determinadas.
Em contraste, entre o líder ou caudilho populista e os setores que o apóiam, se estabelecem relações “diretas” e essencialmente de cima para baixo, ou seja, de estruturas para a ação imediata sob suas ordens. Em Cuba, será assim primeiro com o grande caudilho populista de esquerda, Antonio Guiteras. Uma geração depois, se repetirá com Fidel Castro.
Por isso, como assinalamos na Introdução e ampliaremos no próximo capítulo, a questão do “Comandante em Chefe, ordene!” não é figura retórica, senão a relação essencial dos movimentos populistas entre o caudilho (neste caso, o “comandante”) e suas bases; uma relação que logo, ao chegar ao poder, molda em maior ou menor medida ao conjunto do novo regime e do Estado. E, dentro disso, determina as relações entre as massas populares e o governo e o regime presididos pelo caudilho.
A república da emenda Platt
O estado e o regime quase colonial que começaram a se formar em 1902 tiveram uma trajetória turbulenta desde o começo. Junto às escandalosas fraudes que tinham lugar em cada eleição presidencial (que derivavam em mini-guerras civis e davam pretexto a novas intervenções militares dos EUA), produziram-se outras comoções, mais de fundo e mais sangrentas.
No começo, o motor foi o injusto saldo final da luta pela independência, que burlava seus heróicos combatentes, os mambises, majoritariamente negros ou mulatos. A nova República não somente era um embrião semicolonial, senão também racista das elites brancas. A herança da escravidão, inclusive depois de ser abolida, tem sido sempre a discriminação racial. Em Cuba, testemunhos indicam que isso se agravou na República, que além do mais mantinha a disciplina de um imperialismo profundamente racista. As instituições fundamentais da República semicolonial – a presidência, as câmaras, a justiça, os partidos e a oficialidade do exército – ostentavam uma pureza racial como a dos estados do Sul dos EUA. Teria que esperar até a revolução de 1959 para que os negros pudessem ascender a todas as praias e entrar nos clubes privados.
“Os negros cubanos tinham garantido o grosso dos soldados na guerra da independência e não tinham recebido nenhuma recompensa. Quanto ao caráter racista da sociedade colonial se repetia na era republicana, os mambises eram prontamente esquecidos. Seus grandes generais [como Antonio Maceo] tinham morrido na guerra” (Gott, cit., pp. 120-124).
Depois de depositar esperanças em vão no Partido Liberal, em 1908 foi fundado o Partido Independente de Color para lograr uma representação política. A resposta do regime e da burguesia foi selvagem. Começou com o banimento do novo partido, o encarceramento dos seus dirigentes e finalizou em 1912 com um massacre em que foram assassinados mais de 3.000 negros e mulatos, entre eles o fundador do partido, Evaristo Estenoz (Castro Fernández, “O Partido Independente de Color cubano (1908-1912)”. Foi nessa ocasião que fez estréia em Cuba uma nova arma importada de EUA: a metralhadora, muito útil para arrasar aldeias inteiras de negros (Gott, sit., p.125).
A ditadura de machado, o “Mussolini tropical”
A continuação da República da Emenda Platt não foi melhor que sua inauguração. Em 1925, sob o auspício da Embaixada de EUA, iniciava uma das ditaduras mais terríveis e sangrentas da história latino-americana, a de Gerardo Machado.
Machado tinha surgido do Partido Liberal que, junto com o Partido Republicano, era parte da grotesca paródia que a burguesia cubana fazia desde 1902 do sistema bipartidário dos EUA… claro que com diferenciais que não se espalhavam em Washington, tais como fraudes eleitorais demasiadamente escandalosas, seguidos de mini-guerras civis, assassinatos, etc.
Essa “democracia” seria sucedida pela ditadura de Machado, batizado por Mella como um “Mussolini tropical”. O qualificativo ficou famoso ainda que não fosse totalmente exato. Machado admirava os êxitos do Duce em esmagar o movimento operário, as greves e o “perigo vermelho” e imitava alguns traços.
Assim, em 1926 tratou de pôr em marcha um “cooperativismo” que remendava o corporativismo fascista. Porém seu regime era uma das típicas e sangrentas ditaduras cívico-militares que abundariam no século XX latino-americano, com Washington como patrocinador.
O Mussolini tropical viu esgotar-se seu período de êxitos muito mais rápido que seu modelo italiano. Simultaneamente a sua presunção, em 1925, Cuba entra com toda força nos problemas econômicos que já analisamos e dos quais nunca terminaria de sair totalmente. Caem os preços e a produção de açúcar entra num declive histórico. A depressão mundial iniciada em 1929-30 vai transformar isto em catástrofe; os preços caem e o valor total da produção de açúcar cubano vai 200 milhões de dólares a 40 milhões em 1932 (De Riverend, cit., pp.234ss. e Gott, cit.,p 134).
A situação econômica e social foi levando ao desespero a classe trabalhadora e as classes médias, colocando-as em movimento. A crise colocou também em ação a juventude estudantil, que foi o caldo de cultura em que nasceram e se desenvolveram todas as direções de esquerda ou de direita que encheriam a política da ilha9 até o surgimento de uma nova geração política, a de Fidel Castro… que também se originaria majoritariamente na Universidade.
Em Cuba, como em muitos países latino-americanos dessa época, a Universidade e especialmente o movimento estudantil, tinha uma importância política de primeira ordem. Por um lado, refletia muito as tensões e lutas sociais e políticas. Por outro, influenciava notavelmente nelas, mas não somente em termos “ideológicos” ou “teóricos, senão diretamente, na ação.
A intelectualidade e em especial os estudantes (ainda que provinham da burguesia e das classes médias, não estavam ainda plenamente integrados em suas relações de classe) sempre tinham tido a particularidade de refletir de algum modo as crises e contradições do conjunto da sociedade e os interesses de alguns de seus setores. Por isso, havia desde intelectuais e estudantes pró-imperialistas até pró-operários, passando por matizes intermediários.
Na efervescente estudantada cubana do final dos anos 20 e início dos 30, este fenômeno se expressava ao máximo, especialmente no desenvolvimento de correntes políticas de oposição a um regime que não deixava margem de oposição e contestava aos balaços qualquer reclamação. Na direita surgiria o ABC, agrupamento inspirado no fascismo italiano e uma de suas correntes intelectuais, o futurismo de Marinetti, que simultaneamente era opositor de Machado.
Na esquerda já falamos do nascimento do PCC, ainda que se dirigisse à classe operária, nascia de ativistas estudantis como Mella. O surgimento da classe operária moderna, suas lutas e, sobretudo, a comoção de Revolução Russa tinham impactado um setor dos estudantes.
Mas, como já assinalamos, as principais correntes que surgem entre os estudantes podemos considerá-las como as diversas expressões do populismo, mais reformistas ou mais radicalizadas e revolucionárias. Em 1927, em oposição a Machado, se forma o primeiro Diretório Estudantil. Imediatamente é desbancado pela repressão, mas isso faz girar a muitos de seus ativistas a formas mais clandestinas e violentas de oposição. Em setembro de 1930, o Diretório se restabelece como organização secreta e inicia uma forte campanha terrorista. Meses depois, outros setores formam a Ala Esquerda Estudantil.
Por último, do Diretório nasceria outra corrente, liderada por sua figura mais radical, Antonio Guiteras Holmes, que constitui a União Revolucionaria (UR) em 1931-32 e logo a Jovem Cuba (1934) que em vários aspectos será uma prefiguração política e até anedótica de Fidel Castro10.
1933: estoura uma revolução operaria e popular
Finalmente, tudo voou pelos ares em 1933. Mas não foram as organizações clandestinas e armadas dos estudantes que produziram a explosão. Desatou-se uma revolução iniciada e encabeçada pela classe operária. Como sempre sucedem nestas circunstâncias, os mais amplos setores sociais entraram em ação. Mas, nesse caso, foi a classe operária não somente quem a iniciou, senão também a que determinou em última instância seu curso, no qual influíram decisivamente os problemas de direção política dos trabalhadores.
A revolução começou com uma greve de condutores de ônibus em Havana, em julho. “Isto levou a um confronto sangrento entre os condutores e a polícia. Mas outros trabalhadores se uniram a greve… Em agosto, o que tinha sido um protesto operário comum havia se transformado numa greve geral com aspectos insurrecionais” (Gott, cit., p.135).
Aterrorizados, a embaixada dos EUA e a burguesia cubana deixam Machado sem apoio e o aconselham a renunciar. O ditador foge a Nassau em 12 de agosto. Mas isso não apaziguou as coisas: “Sua caída levou a primeira Revolução Cubana do século XX…
Sem a pressão da ditadura… desatou-se um ascenso do fervor revolucionário…A onda de agitação se estendeu através das zonas açucareiras até os mais distantes engenhos” (Gott, sit., pp. 135-136, sublinhado nosso).
Um informe de observadores norte-americanos descrevia assim a situação: “Se estima que há 36 engenhos com controle operário. Tem-se organizado soviets em Mabay, Jaronú, Senado, Santa Lucía e outras centrais açucareiras. Formaram-se guardas operárias, armadas com paus e revólveres. Um bracelete vermelho serve de uniforme. Os operários fraternizam com os soldados e a polícia… Durante a primeira etapa do movimento, as manifestações em Camaguey e Oriente frequentemente estavam encabeçadas por um operário, um camponês e um soldado” (citado por Gott, p.136). Esse informe acrescentava que os comitês operários tinham tomado os trens, alguns portos e pequenas cidades. Também haviam começado a organizar a distribuição de comida para a população e a repartir terras.
Sobre essa candente situação que acontecia por baixo, a embaixada ianque tenta por cima impor um governo de direita semifascista, com o pessoal do ABC no gabinete. Isso fracassa em poucos dias, pois a revolução fez ruptura na instituição fundamental, o exército.
O 4 de setembro se produz na principal guarnição militar, o Campo Columbia em Havana, uma rebelião de sargentos, cabos e soldados, encabeçada por um mulato de origem humilde – Fulgencio Batista Zaldívar – que reduz a aristocrática oficialidade. O Diretório Estudantil se une à “rebelião dos sargentos” e juntos fazem uma ato, que Batista se firmará como “sargento chefe de todas as Forças Armadas da República” (J. Oramas, “Uma Revolução que se foi a bolina”). A partir daí, a antiga oficialidade foi expulsa do Exército e em parte liquidada fisicamente quando tentava rebelar-se. Sargentos e cabos, como Batista, ocuparão seus postos.
Dias depois, essa coalizão do Diretório com Batista e seus sargentos ergue um novo governo, que provavelmente tenha sido o primeiro da República que não era acordado com o embaixador dos EUA, que se apressou em negar o seu reconhecimento. Passaria para a história como o “governo dos 100 dias”.
Era presidido por Ramón Grau San Martín, rico médico e professor ligado ao Diretório Estudantil e tíbio reformista. Não obstante, quem deu a posse á gestão do novo governo foi Antonio Guiteras, secretário de Governo (Ministro do Interior), que era a ala mais radical e que assume naquele momento a liderança da revolução. Porém, simultaneamente, o sargento Batista se consolidava no comando do novo exército… e se conectava com a Embaixada.
Guiteras emitiu uma série de decretos “progressistas”, que atacavam interesses imperialistas e patronais, como a jornada de 8 horas, o salário mínimo, divisão de terras, nacionalização de serviços públicos, etc. (ver Rosales García, “Revolução e anti-imperialismo em Antonio Guiteras” e Cruz Palenzuela, “Antonio Guiteras, precursor da Revolução Cubana”). Não obstante, Guiteras e sua União Revolucionária não tinham bases orgânicas sólidas em nenhuma classe social e menos na classe operária que fez a greve geral insurrecional que derrubou Machado. Batista simplesmente esperou, consolidou sua posição de comando das forças armadas e em meados de janeiro de 1934, se desfez do governo e seu ministro populista, que ao dizer de Gott, “foi o nexo histórico entre Martí e Fidel Castro. Sua ideologia e prática política prefiguram a de Castro 20 anos depois” (Gott, cit. P 139).
O refluxo da revolução: um balanço dos atores sociais e políticos
A partir daí, o filme da revolução começa a passar ao contrário. Durante mais de um ano prosseguiram as greves operárias e as mobilizações opositoras. Guiteras organiza um novo movimento – Jovem Cuba – e vai para a clandestinidade. O governo do primeiro dos presidentes títeres de Batista – o coronel Carlos Mendieta – vai derrotando-os, principalmente mediante uma dura repressão que inclui a ilegalidade de sindicatos e o fechamento da Universidade. Em março de 1935, o fracasso da convocatória para uma greve geral marca o refluxo definitivo da revolução. Dois meses depois, em 8 de maio, Guiteras é assassinado numa emboscada.
Batista vai consolidando a posição de poder por trás do trono e logo como ocupante do mesmo. Até 1940, ano em que assume diretamente a presidência, Batista, apoiado pelo exército, controlará Cuba através de governos títeres.
Nesta vitória contra-revolucionária pilotada por Batista, a repressão teve um papel central. O novo exército dos sargentos mulatos demonstrou não ser muito diferente do antigo dos aristocráticos oficiais brancos. Junto com isso atuaram outros fatores políticos e sociais não menos decisivos.
O próprio Batista “ainda tinha vento populista nas velas” (Gott, cit., p 141). Amplos setores da população ainda viam Batista e sua “rebelião dos sargentos” como parte da revolução de 1933. Sua condição de mulato nascido no engenho – que reivindicava abertamente – era um facilitador para apresentar-se como “um representante do povo” e, sobretudo dos mais indigentes. Ao mesmo tempo em que reprimia os sindicatos operários e aos estudantes, Batista enviava o exército para construir escolas e alfabetizar em zonas pobres. Era uma demagogia populista, mas de direita e a serviço do imperialismo, que foi crescendo à medida que o melhoramento da situação econômica lhe permitiu fazer concessões também ao movimento operário.
O quadro não estaria completo sem a referência às outras forças políticas que intervieram na primeira Revolução Cubana, o populismo nas suas tão variadas expressões e o PCC. A ala radicalizada e mais conseqüente, a encabeçada por Guiteras, recebeu um golpe mortal com o assassinato do seu caudilho e as constantes perseguições de Batista. Mas a imensa maioria do populismo da revolução de 1933 degenerou sob distintas formas.
Em janeiro de 1936, com a revolução já derrotada, Batista dispõe uma abertura democrática e convoca eleição. Os figurões reformistas do Diretório, como Grau San Martín e Prío Socarrás, se acomodaram de imediato na situação, fundando o Partido Revolucionário Cubano Autêntico (copiando o nome da organização política de Martí). Na realidade, um partido burguês normal, com militância de classe média, que atuava como “oposição de sua Majestade” frente aos batistianos.
Outros fragmentos do populismo, inclusive setores provenientes da Jovem Cuba, degeneraram no movimento estudantil como organizações criminosas, que nas décadas de 40 e 50 assolavam a Universidade de Havana.
O balanço do PCC foi ainda pior. No momento de produzir-se a revolução de 1933, o stalinismo estava na política do “terceiro período”. Toda corrente de esquerda que não fosse estalinista era caracterizada como uma “variante” do fascismo. Assim, os socialistas alemães e europeus em geral eram qualificados de “social-fascistas”. Em Cuba não havia social-democratas.
Então, os “social-fascistas” eram os opositores populistas de Machado, o Diretório, Guitaras etc. Nesse contexto, ao começar em julho, as greves operárias que derrotariam Machado, o PCC comete sua primeira e monumental traição. A direção da CNOC pactua com a ditadura o levantamento das greves. Seus piores inimigos eram os “social-fascistas” do Diretório e a UR! “Esta foi a origem da maior divisão na esquerda cubana, que somente terminou com a fundação, por Fidel Castro, do novo PC, unido em 1965” (Farber, cit., p. 37). No entanto, os trabalhadores não fizeram caso das diretivas dos dirigentes sindicais do PCC e prosseguiram a greve geral até derrotar Machado.
Logo, o alvo número 1 do PCC foi o governo populista radical, em que Guiteras era a principal figura. O atacou como o inimigo principal, mas era óbvio que estava sob o olhar da embaixada ianque e de Batista para dar-lhe um golpe e derrubá-lo.
Já no final dos anos 20, a delirante política do “terceiro período” tinha sido um dos motivos do surgimento em Cuba do primeiro grupo trotskista – a Oposição Comunista – encabeçado por um grande dirigente operário, e negro, Sandalio Junco, que logo dirigiria a Federação Operária da Havana11. Ao contrário do PCC, a corrente de Junco (que logo se chamaria Partido Bolchevique Leninista) atua frequentemente em unidade de ação com Guiteras, fato que se aprofunda depois do golpe de Batista em janeiro de 1934. A fracassada greve geral de 1935 foi principalmente impulsionada pelo grupo de Junco e a Jovem Cuba, de Guiteras. A CNOC, em mãos do PCC, a sabotou.
Em 1935, Moscou dá um giro de 180°: do ultra-esquerdismo passa à linha de “frente popular” com setores “progressistas” e/ou “democráticos” da burguesia. Em Cuba, o setor democrático e progressista resulta ser… o ex-sargento Fulgencio Batista.
Assim, em 1936, decide-se dar apoio político a Batista em troca de legalidade e apoio para se apoderarem dos aparelhos sindicais. “As pessoas que trabalham para derrubar Batista – declarava a revista da Internacional Comunista – não estão agindo no interesse do povo cubano’. Batista permitiu que o PCC formasse uma nova central operária, a CTC, dirigida por Lázaro Peña, um operário negro da indústria do tabaco. A TCC se transformou na beneficiária de uma estreita relação com o Ministério do Trabalho” (Gott, cit., pp. 143-144).
O idílio do stalinismo com Batista culminaria no início da década de 40. Batista ganha as eleições presidenciais naquele ano se apresentando como candidato da Coalizão Socialista Democrática, aliados com o Partido (ex-PCC). Em compensação, seus sócios estalinistas receberão dois ministérios.
O órgão oficial do PSP – Hoje de 13 de julho de 1940 – fundamenta assim seu apoio a Batista: “Cubano 100% zeloso, guardador da liberdade pátria, tribuno eloquente e popular… pró-homem da nossa política nacional, ídolo de um povo que pensa e vela por seu bem estar… homem que encarna os ideais sagrados de uma Cuba nova e que pela sua atuação de democrata, identificando-se com as necessidades do povo, leva em si a marca do seu valor”.
O stalinismo escrevia desta maneira o epitáfio da revolução operária e popular de 1933.
3) O Triunfo da segunda Revolução Cubana em 1959
A segunda pós-guerra presenciaria o desenvolvimento da segunda revolução cubana do século XX, esta sim triunfante. A segunda revolução apresenta, por um lado, uma clara continuidade com a de 1933 (e, em um sentido mais amplo, com as lutas do século XIX pela independência nacional, cortadas brutalmente pela intervenção dos EUA). A corrente hegemônica de 1959 e seu líder Fidel Castro, continuam a tradição populista radical de pré-guerra, especialmente a de Guiteras.
Mas, por outro lado, a revolução de 1959 será o oposto à de 33, ou, pelo menos, profundamente diferente. Longe de ser uma revolução em que a classe operária e trabalhadora, atuando com suas próprias organizações, joga o papel principal, a revolução de 1959 será popular, no mais amplo sentido da palavra.
Os fatos e datas que gradativamente levaram à revolução de 1959 são bem conhecidos pela vanguarda latina americana, diferentemente do período anterior, quando ocorreu em Cuba uma das mais importantes revoluções operárias da América Latina no século XX, algo não muito conhecido pela grande maioria.
Portanto, não faremos aqui uma recapitulação histórica como a do período anterior. Vamos somente relembrar alguns fatos e datas que precederam a revolução de 1959.
Fulgencio Batista, com seus servidores do Partido Socialista Popular em dois ministérios, governa até 1944. Nesse período, Cuba goza os benefícios da Segunda Guerra Mundial, que aumenta o preço do açúcar e permite anos de prosperidade inédita, fenômeno que também ocorre em outros países da América Latina, como Argentina, Uruguai, Chile etc., com outras produções primárias.
O pós-guerra, com um declínio progressivo do preço do açúcar, especialmente a partir de 1952, irá devolver Cuba à realidade de monocultura, que com suas oscilações extremas, desloca econômica e socialmente a ilha.12
Batista foi sucedido por seu opositor, Ramón Grau San Martín, presidente do “governo dos cem dias” de 1933, que agora encabeça o Partido Revolucionário Cubano Autêntico. Em 1948, também pelo PRCA, alcança a presidência outra relíquia do Diretório Estudantil de 1933, Carlos Prío Socarrás.
Os governos dos “autênticos”, especialmente o de Prío, ficarão famosos pelo grau fenomenal de corrupção… isso em um país onde quase nenhum governante havia deixado de roubar!13 Ainda assim, como já corriam os tempos da Guerra Fria, purgam o movimento sindical de dirigentes do PCP. Os estalinistas encabeçavam, sob as asas de Batista, a burocratização dos sindicatos e se submetiam ao Estado, via Ministério do Trabalho.
Logo, como ministros de Batista, não se cansavam de elogiar a aliança “antifascista” com a “Grande Democracia do Norte”. Portanto, no clima da Guerra Fria, resultou fácil varrê-los dos aparelhos sindicais (Gott, cit., p. 145) para serem substituídos por burocratas aprovados por Washington. Em um nível geral, o PSP perdeu também muito apoio político.14
O desastre da administração dos “autênticos” e sua escandalosa corrupção produzem, em 1947, uma ruptura no PRCA. Eduardo Chibás, outra figura radical da revolução de 1933, que havia atuado sob a direção de Guiteras no “Governo dos cem dias”, funda o Partido Ortodoxo, com o lema “Vergonha contra dinheiro” e “Prometemos não roubar”, que revive um dos temas preferidos do populismo, a honestidade, que logo seria retomado pelo Movimento 26 de julho. Fidel Castro, que havia iniciado sua atividade política no movimento estudantil na Universidade de Havana, seria depois um dos dirigentes da juventude ortodoxa. Em 1951, Chibás morre em um insólito incidente: depois de pronunciar um inflamado discurso por rádio – “O último aldabonazo” – um tiro é disparado em frente ao microfone. Um gesto de imolação também inscrito na tradição populista cubana.
O processo político é bruscamente interrompido quando Fulgencio Batista, em 1952, um ano antes das eleições presidenciais dá um golpe militar e retorna ao governo como ditador. Em 1954, convoca eleições sendo candidato único. Sua ditadura abrirá as portas à revolução.
Em 26 de julho de 1953, Fidel Castro, que organizou um grupo de jovens, quase todos provenientes da juventude ortodoxa, fracassa ao tentar a tomada do quartel Moncada. Em 1956, depois de ser anistiado, prepara no México uma expedição que, partindo a bordo do iate Granma, desembarca em 2 de dezembro, na província Oriente. Iniciam-se as operações do Exército Rebelde. Assim se repete o esquema da maioria das rebeliões produzidas na ilha desde o século XIX, incluindo a frustrada de Guiteras, em 1935.
Em 1958, a oposição a Batista cresce em toda a ilha, mas em 9 de abril fracassa uma tentativa de greve geral, que motiva uma duríssima repressão nas cidades. Contudo, em julho, uma ofensiva de Batista contra os rebeldes é derrotada ao ir se desmoronando o exército. A ditadura já não pode se sustentar.
No 1º de maio de 1959 Batista foge da ilha. O Exército Rebelde e o Movimento 26 de Julho tomam o poder. Em maio se promulga a Lei de Reforma Agrária. Começam a agravar-se as tensões com Washington e a radicalizar-se o processo revolucionário, num curso vertiginoso. Em 4 de fevereiro de 1960, Cuba firma um tratado comercial com a União Soviética. Em março, para derrotar o governo de Castro, agentes dos EUA começam ações de sabotagem e atentados que já estavam em preparação desde 1959. Em abril, o governo ianque planifica o bloqueio econômico da ilha, que irá crescendo, com a retirada da quota de açúcar (setembro 1960) e outras medidas. Em junho e julho, as refinarias de petróleo de propriedade imperialista se negam a processar o óleo cru recebido da URSS. Fidel as expropria. Em agosto, Castro expropria em massa as propriedades norte-americanos. Em outubro de 1960, EUA iniciam um bloqueio econômico total (que dura até hoje) e o governo começa a expropriação em grande escala da burguesia Cubana, que em grande parte já havia se mudado para Miami nos meses anteriores.
Em janeiro de 1961, os EUA rompem relações diplomáticas e pouco depois organizam bombardeios aos aeroportos cubanos. Em 4 de fevereiro, na Segunda Declaração da Havana, Fidel Castro proclama o caráter socialista da revolução e em 17 de abril, na Bahia dos Porcos, se inicia uma invasão de “vermes” organizada pelos EUA, que é rapidamente derrotada.
Desde então, a “institucionalização” da revolução, o fracasso da linha guerrilheira patrocinada por Guevara para América Latina 15 e o isolamento internacional da ilha se irmanam para que a direção cubana, Fidel Castro, leve a ilha a uma estreita integração e dependência da burocracia de Moscou, copiando tanto seu modelo econômico como político. Neste contexto, em 1965 funda se o novo PCC (Partido Comunista de Cuba), réplica dos partidos únicos burocráticos do bloco soviético. O regime político também se consolidará como um partido único, como não somente administra verticalmente o aparelho de Estado, mas todas as organizações sociais: operárias, estudantis, femininas, culturais, etc.
Quem, o quê e o como na segunda revolução cubana: o papel da classe operária
Como já adiantamos, as forças motrizes sociais e políticas da revolução de 1959 apresentaram simultaneamente uma continuidade do processo de 1933 e, ao mesmo tempo, uma profunda diferença. Esta nova combinação dos sujeitos sociais e políticos, atores da revolução, será o principal determinante do seu caráter – eminentemente popular e populista – assim como o tipo de estado que irá se conformando, seu regime, suas relações políticas e econômicas e igualmente das linhas que aplicará em nível internacional.
Enquanto isso, a revolução de 1959 é, em todos os sentidos, social e politicamente, o revival triunfante do populismo radical de uma geração anterior; a classe operária como tal passa a segundo plano (o oposto de 1933). Nisso influíram não somente os resultados imediatos da derrota da revolução de 33, mas o que aconteceu depois dela e o papel sinistro cumprido pelo PCC (logo, PSP).
A classe operária cubana, depois de ser derrotada nessa primeira revolução, foi aprisionada em um poderoso aparelho de sindicatos burocráticos e estatizados, a CTC. Este processo, como advertia Trotsky no México, era geral nessa época, embora em Cuba houvesse características peculiares – porque disso se encarregaram, principalmente os stalinistas, e não correntes nacionalistas burguesas, como no México e logo na Argentina. Ao mesmo tempo, desde cima, foram dadas concessões aos trabalhadores sindicalizados que chegaram a ser 50% da força de trabalho na ilha. Não se trata do fato de que não ocorressem lutas: o proletariado cubano sempre se distinguiu por sua combatividade, que foi represada pelos aparelhos e também orientada por canais sindicalistas e corporativos, cujo horizonte não ia além das “pressões” para ampliar essas concessões16.
Em 1947, a Guerra Fria vai interromper o idílio entre os sindicalistas do PSP e o Estado. O governo de Grau San Martín desaloja, com a polícia, Lázaro Peña e demais sindicalistas do PSP do “Palácio dos Trabalhadores”, do edifício da CTC, e o entrega a um sinistro burocrata ‘amarelo’, Eusebio Mujal, um gângster que logo trabalharia a serviço de Batista17.
A classe operária entrou, então, com essas graves desvantagens políticas e orgânicas ao processo revolucionário de meados dos anos 50. Como aconteceu em amplos setores da sociedade cubana, desde a burguesia até as camadas mais populares, os trabalhadores não ficaram à margem. Não obstante, não voltaram a ser desta vez a indiscutível vanguarda. E, sobretudo, sua participação foi, principalmente, de forma individual, como parte do povo e não orgânica como classe. Não houve “soviets” nem sindicatos revolucionários, como em 1933, que fizera cair a ditadura mediante greves gerais revolucionárias18.
Em 9 de abril de 1958, a derrota de uma tentativa de greve geral revolucionária leva a uma sangrenta radiografia desta mudança. A greve havia sido convocada pelos setores urbanos (El Llano) do 26 de Julho e outros movimentos (parece que com muitas reservas de Fidel Castro e dos comandantes de La Sierra). Ao convocá-la, todos tinham em mente a greve geral insurrecional que havia acabado com Machado (Gott, cit., p. 162). A custosa derrota desta iniciativa colocaria em evidência que a situação era completamente diferente, e suas conseqüências aprofundaram a idéia de que desta vez não era a classe operária organizada, a vanguarda da luta.
O fracasso teve conseqüência político/social de grande importância. A derrubada de Batista por uma greve geral revolucionária, talvez houvesse empurrado novamente a classe trabalhadora à cena central, como em 1933. Sua derrota, ao contrário, “levou a uma consolidação do controle interno de Castro sobre o movimento, e juntamente, um papel muito maior, político e militar, das guerrilhas das Sierras à custa do movimento urbano” (Farber, cit., p. 118).
Para esta grave derrota contribuiu não só a repressão (Machado tampouco economizou sangue em julho e agosto de 1933). Foi importante o papel de fura-greve do aparelho burocrático da CTC liderado por Mujal, que mereceu as congratulações de Batista (ver “Brief History of the Cuban Labor Movement & Social Policy” Gente de la Semana, vol.1, Havana, January 5, 1958, No.1, American Edition). Somam-se a isso outros fatores político/sociais de primeira ordem. O PSP, que conservava influência no movimento sindical, não participou, mesmo tendo relações com Castro e a direção urbana do Movimento 26 de Julho tampouco teve uma política para comprometê-lo na mobilização. Mas o fator decisivo foi que o Movimento 26 de Julho carecia totalmente de trabalho orgânico no movimento operário e de ligações com a classe trabalhadora (Gott, cit., pp. 162ss. e Farber, cit., p. 118).
Contra o que se acredita habitualmente, a grande maioria dos lutadores do Movimento 26 de Julho e demais movimentos armados, não estavam em “La Sierra” e sim em “El Llano”; ou seja, nas cidades. E foi também nas cidades onde se produziu cerca de 90% das baixas. Por isso, o rotundo fracasso de 9 de abril de 1958 colocou em relevo o caráter político/social do Movimento 26 de Julho, que nas cidades organizava milhares de lutadores clandestinos, ao mesmo tempo em que era organicamente alheio ao movimento operário e à classe trabalhadora.
Um imenso movimento populista
No capítulo anterior, fizemos uma descrição do tão variado e complexo fenômeno do populismo cubano, que apresenta muitas analogias com os movimentos similares latino-americanos. Porém, o fundamental não são as semelhanças, mas sua enorme diferença: por que, excepcionalmente, uma corrente, Fidel Castro e seu Movimento 26 de Julho, expropriou o capitalismo, enquanto o resto dos movimentos populistas, nacionalistas ou frente-populistas da América latina jamais atravessou essa linha? A típica resposta que deu, em seu momento, a maior parte do movimento trotskista e segue expressando ainda hoje, nestes termos: “Em 1 de janeiro de 1959… o Exército Rebelde liderado por Fidel Castro fazia sua entrada triunfal em Havana. Porém, a direção do processo recaiu no Movimento 26 de Julho, uma frente política policlassista com um programa democrático limitado. Face à pressão do imperialismo norte-americano, Fidel Castro declara Cuba um ‘país socialista’ e acaba por expropriar os principais meios de produção – as empresas imperialistas e as da burguesia local. Esta transformação de Cuba em uma economia de transição ao socialismo desmentia a falsa teoria dos stalinistas sobre a ‘revolução por etapas’ nos países semicoloniais, segundo a qual a classe operária deveria se subordinar à suposta ‘burguesia nacional’ (…). Não obstante, o estado operário que surgia desta revolução não estava baseado em conselhos de operários e camponeses, senão que o exército guerrilheiro que tinha tomado o poder do Estado, estabeleceu um regime que reproduzia sua estrutura verticalista, ou seja, um Estado operário burocraticamente deformado” (em Claves Nº 1, abril 2008, sublinhados nossos).
Citamos isso não porque tenha algo de original, senão, pelo contrário, porque tem o mérito de resumir o que foi uma interpretação compartilhada amplamente pela maioria do movimento trotskista. Partindo dela, se expressaram diferenças muito importantes, mas no geral partiam dessa base comum. A corrente de Nahuel Moreno desenvolveu, com o tempo, distintas posições, mas essencialmente independentes. Pelo contrário, a principal corrente do trotskismo europeu, a de Ernest Mandel, defendia um seguidismo quase incondicional 19.
Vamos examinar então esta explicação tão representativa, primeiro do sujeito político que encabeçou a revolução (“o Movimento 26 de Julho, um frente político policlassista com um programa democrático limitado”); e logo, da dialética dos acontecimentos (“perante a pressão do imperialismo norte-americano, Fidel Castro declara Cuba um “pais socialista” e acabam expropriando os principais médios de produção”).
O Movimento 26 de Julho foi antes de qualquer coisa um movimento populista e não uma frente policlassista, uma expressão que, significa algo, nos indica uma “frente popular”20. Mas mesmo se assim fosse, continua sem uma resposta convincente o enigma de como essa “frente policlassista”- ou seja, uma frente com um setor da burguesia dentro – em poucos meses acabou…expropriando a burguesia. Ou seja, um verdadeiro milagre político/social.
A “pressão do imperialismo” tem sido a resposta universal usada pela maioria, não só do trotskismo, mas da esquerda e o “progressismo” em geral. Isso aparentemente explica muito, mas ao mesmo tempo não explica nada. É uma verdade indiscutível que, quase desde o princípio até que se produza finalmente a expropriação da burguesia no final de 1960, se desenvolve uma escalada vertiginosa de golpes e contragolpes entre Fidel Castro e Washington.
Porém, a mais de um século na América Latina, o imperialismo ianque vem aplicando “pressões” sobre todos os governos em geral e, em especial, sobre os governos nacionalistas, populistas, frente-populistas etc., que pretendem desobedecê-lo em alguma medida. E muitas vezes essas pressões foram violentas: fomento de golpes de Estado, intervenções militares, etc.
O problema é que nenhum – absolutamente nenhum – desses governos respondeu como Fidel Castro. Então, a resposta não pode se reduzir à generalidade das “pressões” imperialistas (seguramente, muito importantes), e sim ao que houve de específico, de peculiar no caso cubano21. E isso, principalmente, nos leva não ao fator “objetivo” das “pressões do imperialismo” em geral, mas ao mais subjetivo, o do movimento populista 26 de Julho e seu líder, Fidel Castro.
O 26 de julho, as classes, a crise social e a derrubada do velho estado
Alguns marxistas, empenhados contra todas as evidências em ver uma “revolução operária” no processo de 1959, destacam a participação de setores assalariados na resistência contra Batista nas cidades, assim como a incorporação na guerrilha de semiproletários na província de Oriente.
Isso tem sua importância, mas não leva às conclusões que se pretendem. Desde o mesmo 26 de julho de 1953 até a tomada do poder em 1959, os lutadores – como já sublinhamos – se integravam como indivíduos às estruturas político/militares dos movimentos (o Movimento 26 de Julho, o Exército Rebelde etc.), com independência de sua origem e classe social.
Tanto o Movimento 26 de Julho e o Exército Rebelde como outros movimentos que lutaram contra Batista, ao estilo do novo Diretório Estudantil, eram movimentos populistas, que se caracterizavam por dirigir-se ao “povo” em geral, e incorporavam individualmente as pessoas provenientes de todos os setores sociais.
“Os populistas vinham de todas as classes sociais, menos dos mais ricos e dos mais pobres… (Apesar de que entre os lutadores do Moncada e os do desembarque do Granma) havia trabalhadores de origem ou ocupação, muito poucos haviam tido atividade ou participação em lutas operárias políticas ou sindicais” (Ferber, cit., pp. 50 e 51).
Logo, em Sierra Maestra e Oriente o recrutamento de camponeses que em sua quase totalidade não tinham experiências anteriores em lutas rurais “acrescentou um novo elemento à típica base populista urbana dos veteranos de Moncada e Granma… E foi muito importante para permitir a Fidel Castro moldá-los como fiéis seguidores de sua liderança como caudilho. Em todo caso, um círculo íntimo de homens ‘sem classe’, desligados de toda vida orgânica de qualquer uma das classes sociais de Cuba, conformaram o coração e o centro político de Castro” (Farber, cit., p.50, sublinhados nossos).
A apelação típica do populismo ao “povo” em geral, à “nação”, às pessoas não como membros de uma classe social senão da “pátria” possuía em Cuba uma ressonância e dimensões especiais, superlativas, que tinham a ver não com razões mágicas senão históricas e materiais que explicamos extensamente: o original curso histórico de Cuba, a brutal frustração da sua independência pela intervenção do imperialismo ianque, sua Segunda frustração em 1933, sua formação econômica social com um jugo quase colonial em relação com EUA e em geral todas as tensões que esse desenvolvimento desigual e combinado tinha gerado.
Em outros países latino-americanos, esses temas do populismo e seus caudilhos, como o de apresentar-se por cima das classes e encarnar a “pátria”, o “povo” e a “nação” têm sido matéria de política de ficção (ainda que a existência e êxito dessas ficções indicam problemas autênticos por trás delas).
Mas em Cuba, muito mais que em outros países, isso sintonizava com reais e poderosos elementos e contradições, desde a tardia e malograda independência até diversas formas de relativo “desclassamento” ou “debilitamento” de todas as classes sociais, com relações “anormais”, conflituosas, de crise com as velhas instituições, as organizações políticas, as forças armadas, etc., que ficavam abarcadas no repudio universal a dita “politicagem”. Ao mesmo tempo, não havia maior claridade a respeito das alternativas a tudo isso.
Esses elementos facilitariam a elevação de um caudilho e um movimento que apareciam por cima de toda essa imundície, representando os interesses superiores da pátria. O lema com o qual ascenderia este grande caudilho –“Pátria ou morte”- iria essa vez ser grave, ainda que simultaneamente seu programa explícito fosse inicialmente impreciso e moderado.
“Cuba estava entre os países economicamente mais avançados de América Latina, com significativas classes sociais burguesa, média e operária. Mas essas classes tinham ficado politicamente debilitadas depois da revolução de 1933, da que os capitalistas cubanos emergiram com uma significativa diminuição da sua hegemonia. Um grupo de sargentos amotinados redirecionou a oficialidade proveniente dos altos círculos da sociedade cubana… A classe operária estava altamente organizada em sindicatos, porém tinham se tornado muito burocráticos e corruptos… motivo pelo qual essa classe não jogou um papel significativo na luta contra Batista… [Assim mesmo,] nos anos 50, os débeis partidos políticos anteriores a Batista tinham se desfeito, refletindo a debilidade política de todas as classes… Era uma situação na qual podia prosperar um bonapartismo… um líder político que adquirisse um considerável grau de poder e liberdade de ação em relação tanto às classes dirigentes como às trabalhadoras (…). Por outro lado, existia uma liderança política revolucionária que, longe de ser pequeno-burguesa radical (como dizia o PSP), era “sem classe” no sentido de não ter fortes laços orgânicos ou institucionais nem com a pequena burguesia nem com as outras principais classes sociais” (Farber, cit., pp.115ss., sublinhados nossos).
Por outra parte, o Movimento 26 de Julho e o Exército Rebelde eram notavelmente juvenis, começando pelo líder máximo. Muito tem se falado a respeito, mas refletido pouco sobre as implicações político sociais. Compartilham, tanto pela idade como pela desestruturação social dos seus militantes e combatentes, várias características estudantis. Como assinalamos antes, os estudantes, ainda que provenham de famílias da burguesia e classes medias somente uma minoria dos setores trabalhadores, não estão todavia plenamente integrados nas relações da sua classe de origem. Assim, sob o impacto de problemas gerais da sociedade – graves crises, ditaduras, injustiças flagrantes, etc., podem muitas vezes orientar-se em outros sentidos e defender outros interesses que os de sua classe originaria.
Esse processo de (relativo) “desclassamento” não deixava individualmente no vazio aos lutadores do Movimento 26 de Julho e o Exército Rebelde. Não eram em modo algum “desclassados”, ou “marginais” no sentido corrente desses termos. Poderíamos dizer que sua “classe” sui generis, ou mais precisamente, sua estrutura social ou setor social imediato a que pertencia era essa mesma instituição proto-estatal, o movimento-exército (que prontamente se converteria em base do Estado sem mais nada). Suas relações com as outras classes da sociedade se estabeleciam através dessa mediação, o que o conferia de conjunto uma notável autonomia.
Assim, Castro e seu movimento-exército, no caminho da tomada do poder, podem ir logrando apoios em todas as classes sociais, sem serem, ao mesmo tempo representantes diretos e orgânicos de nenhuma delas em particular.
No ângulo oposto, o regime de Batista termina ganhando o repúdio também de todo o espectro social. Um amplo setor da elite tradicional sempre havia detestado ao ex-sargento (até por motivos racistas) e orientou-se para apoiar Fidel, em quem viam (equivocadamente) como a um deles. O mesmo fez a Igreja e a maçonaria. Idênticos giros se deram desde o resto da sociedade: a Universidade, desde o primeiro momento, tinha sido um foco duramente opositor; os trabalhadores, ainda que de mãos atadas para atuar como classe por seus aparelhos sindicais, tampouco queriam o ditador, foram inclinando-se cada vez mais para Castro. Inclusive o setor liberal do imperialismo ianque começou a simpatizar maciçamente com os barbudos, como se refletia, por exemplo, no influente New York Times. No final, Batista, diretamente, somente representava a uma lumpem burguesia de oficiais corruptos das FFAA e sócios cubanos das máfias norte-americanos.
Esse “esvaziamento social” foi mortal não somente para a ditadura, senão também para o estado burguês, pois levou a crise para as forças armadas, que terminaram em colapso. Isto deixou ao Movimento 26 de Julho e mais que nada ao Exército Rebelde como o único poder estatal, no sentido pleno da palavra.
A ruptura com o imperialismo, a independência nacional e a expropiação do capitalismo
Começava assim a se constituir um novo Estado. Esse movimento e o exército, em primeiro lugar seu “Comandante em Chefe”, tinham adquirido previamente – como assinalamos – “um considerável grau de poder e liberdade de ação em relação tanto as classes dirigentes como as subalternas”, “uma liderança político-revolucionária que, longe de ser pequeno burguês radical… era ‘sem classe’, no sentido que não tinha fortes laços orgânicos ou institucionais nem com a pequena burguesia, nem com as outras principais classes sociais”.
Isso estabelecia a grande diferença com o resto dos populismos de ontem e de hoje, desde Juan Domingo Perón ou Jorge Eliécer Gaitán até Chávez, para não falar das “frentes policlassistas”, ou seja, as clássicas “frentes populares”, no estilo da UP chilena, com correntes e partidos ligados a setores da burguesia, ao aparelho do Estado (incluídas as forças armadas), a pequena burguesia e, sobretudo, as burocracias sindicais e políticas “de esquerda”.
È sobre esta diferença fundamental do sujeito político da revolução que pesará os fatores “objetivos”, entre eles (não o único) “a pressão do imperialismo norte-americano”. E é por esse fator subjetivo que as pressões do imperialismo darão, neste caso, um resultado completamente diferente do resto dos casos em que se aplicaram.
Por outro lado, este sujeito político não se limitaria simplesmente a responder a estas “pressões” e ataques. A moderna investigação de historiadores marxistas – como Sam Ferber e Richard Gott – que já tiveram acesso a muitos documentos descartados tanto pelo Departamento de Estado como da ex-URSS provam que de forma alguma a direção cubana foi uma folha na tormenta, na qual os ventos que a sopravam levaram à ruptura com os EUA primeiro, e logo à expropriação.
As primeiras iniciativas que configuraram casus belli – como a lei de reforma agrária, moderada, mas inaceitável para os EUA e a oligarquia cubana – foram tomadas pela direção de Fidel Castro sem consulta, negociações nem aprovações de Washington. Isto implicava na ruptura consciente de uma norma colonial não escrita, mas obedecida desde 1902 por todos os governos da ilha (à exceção dos “100 dias” de Guiteras). Ou seja, desde o início, Fidel começou atacando o grande problema herdado desde 1898-1902: a independência nacional de Cuba.
Obviamente não significa que estivesse nos planos de Fidel Castro chegar à expropriação do capitalismo, e muito menos que o direcionamento da revolução fosse um objeto que se moveria porque outros o empurravam22. Em todo caso, já em 1958, Castro escrevia reservadamente a Celia Sánches que quando a guerra contra Batista terminasse, “começaria outra guerra maior e muito mais longa contra os EUA” (Ferber, cit., p. 65).
E sua previsão estava correta: a revolução colocava novamente em evidência o grande problema histórico da independência nacional, que como vimos tem sido o fio ininterrupto que uniu as heróicas lutas do século XIX com as revoluções de 1933 e 1959.
Mas essas e outras considerações não se expressavam em um “programa” político (no estilo marxista), mas no segredo do círculo íntimo do “Líder Máximo”, como tem sido a norma de todos os bonapartismos e caudilhismos.
Como uma regra entre os movimentos populistas, o Movimento 26 de Julho não tinha um programa global claramente formulado, e o que estava escrito não era, efetivamente, muito avançado. Mas é uma falta de compreensão sobre estes tipos de movimentos querer medirem-los com os parâmetros dos partidos marxistas e operários, em que a questão do programa público, é formulada com claridade, ocupa um lugar central. Nos movimentos populistas, poderíamos dizer que o programa se expressa principalmente na chefia militar e suas ações, em que as considerações táticas têm um peso transcendental em relação às mais estratégicas.
Mas isso não implica de nenhuma forma, que não possuam uma ideologia, muito diferente do populismo radical cubano, com suas profundas raízes históricas, que já examinamos.
“Em contraste com as analises que retratam os líderes cubanos relacionados meramente perante a política de EEUU e suas ações, afirmo que estes líderes foram atores fortemente influenciados por suas próprias predisposições políticas e inclinações ideológicas. As mentes dos líderes cubanos não estavam primariamente moldadas pela política de EEUU para eles nos anos 1959-60, senão em relação com a política anterior de EEUU em Cuba e em todas as partes… e o fato mais importante era, logicamente, a política de EEUU a respeito de Cuba desde o fim do século XIX (…) Castro era um caudilho, porém com ideias” (Farber, cit., pp.112ss., sublinhados nossos).
O curso da revolução cubana em direção da independência nacional e expropriação da burguesia não foi, então, expressão de nenhuma “lei da gravidade” da política, senão o resultado de um combate entre sujeitos políticos e sociais. Logicamente, como em todo processo histórico, na Revolução Cubana houve uma dialética de ação (e luta) dos sujeitos políticos e sociais – revolucionários e contra-revolucionários – entrelaçada com os fatores relativamente mais objetivo.
Entre esses fatores estava, por exemplo, a existência da União Soviética, que nesses anos aparecia inclusive como ganhando a carreira do desenvolvimento econômico dos EEUU. Esse fator já antes do triunfo da revolução entrava no horizonte de manobras do Movimento 26 de Julho (ainda que ao mesmo tempo, oficialmente, se apresentava perante os EEUU e mais ainda a imprensa norte-americana, como não “comunista” e inclusive como “anticomunista”)23.
Esta dialética de luta entre sujeitos revolucionários e contra-revolucionários, combinada com fatores mais “objetivos”, foi levando as coisas, como sempre, a resultados que iam além e/ou eram diferentes dos previstos pelos diferentes atores24. Mas isso não tira, senão sublinha, que os elementos determinantes dessas combinações estavam nos sujeitos político sociais.
Exército guerrilheiro, estado operário e transição ao socialismo
O Movimento 26 de Julho e, sobretudo, o Exército Rebelde passaram a constituir o núcleo do novo estado. O quê significou isso concretamente? Que se converteram em um aparelho burocrático que agora exercia funções estatais, tanto mais facilmente pela sua relativa autonomia em relação a todas as classes da sociedade, acima das que já tinham se “elevado” muito antes de tomar o poder.
Todo exército constitui obrigatoriamente um aparelho disciplinado de cima para abaixo. Mas nesse caso, era um verticalismo por via dupla, pois não era o exército do movimento operário revolucionário, com organismos democráticos de classe (conselhos operários, sindicatos revolucionários, partidos, etc.), senão as forças armadas de um movimento populista, que por si mesmo funciona sob as normas do acatamento sem reservas das ordens do caudilho, agora transformado em “Comandante em Chefe” e “Líder Máximo”.
Segundo o texto que estamos comentando, a expropriação dos capitalistas teria dado, por si mesmo, o caráter “operário” ao novo estado. Mas, lamentavelmente, “o estado operário que surgia desta revolução não estava baseado em conselhos de operários e camponeses, senão que o exército guerrilheiro que tinha se apropriado do poder do Estado, estabeleceu um regime que reproduzia sua estrutura verticalista, ou seja, um Estado operário burocraticamente deformado”.
Em texto aparte fazemos extensamente a história e a crítica desta concepção, segundo a qual basta que um estado exproprie ao capitalismo para que automaticamente se transforme em “operário”, ainda que a classe trabalhadora como tal não tenha peso algum novo estado, a não ser o de apoiar sem nem piar as decisões de cima. Pensamos que é abusiva e equivocada a aplicação da caracterização de Trotsky a respeito da URSS nos anos 30, a fenômenos políticos e revoluções profundamente diferentes que a de outubro de 1917 e seu curso posterior.
Não obstante ter se apoiado na classe trabalhadora (como também em outras classes e setores da sociedade e no “povo” em geral), nem o Movimento 26 de Julho nem o Exército Rebelde, que agora constituíam o estado cubano, tornavam-se “operários” por expropriar a burguesia. Suas relações com a classe operária seguiram sendo uma continuidade do período anterior, ainda que agora como a burocracia de um estado cuja burguesia tinha fugido em massa para Miami.
O que se fazia (neste caso a expropriação) não transformava magicamente a natureza social de quem o fazia, nem tampouco de como o fazia. Insistimos: a relação do novo poder com a classe operária e o conjunto da sociedade continuava, com mudanças, a anterior a 1959 de Fidel e seu Movimento 26 de Julho e o Exército Rebelde. Antes, buscando “apoios desde todas as classes sociais, sem ser ao mesmo tempo representantes diretos e orgânicos de nenhuma delas em particular”25. Agora, após a ruptura com a burguesia, o fazia apoiando-se no “povo”, incluindo o proletariado. Mas isto não convertia o novo estado e seu governo em uma expressão direta e orgânica, de classe.
O novo estado não será, portanto, a encarnação política da classe operária cubana, mas uma burocracia, na qual a ausência de uma burguesia em nível exclusivamente nacional (ainda que não em escala mundial) converte num “híbrido” não é (ainda) uma burguesia, porém “é algo mais que uma simples burocracia. E a única capa social privilegiada e dominante, no pleno sentido do termo na sociedade” (L. Trotsky, “A revolução traída, p. 602, sublinhado nosso).
A direção deste estado burocrático, especialmente nos primeiros anos, recebeu o apoio fervoroso e sincero da maior parte do povo cubano (incluindo a classe operária). Isto, sobretudo, se concentrou no caudilho desta grande revolução, Fidel Castro.
Mas que os trabalhadores e as massas apóiem não equivale que a classe operária decida, ou seja, que exerça o poder (sua ditadura de classe), nem governe por meio de seus próprios órgãos de poder. Uma coisa é apoiar outra muito diferente é decidir, isto é, exercer o poder.
Podemos medir bem este abismo comparando as duas grandes palavras de ordem da Revolução Russa de 1917 e da Revolução Cubana de 1959, respectivamente. Na primeira foi: “Todo o poder aos conselhos operários (soviets)”, que nesse momento eram organismos de massas extraordinariamente democráticos.
Na Segunda foi: “Comandante em Chefe, ordene!”. Anos depois, isto contribuiria para facilitar uma simbiose entre o regime nascido da grande revolução de 1959 e o da burocracia do Kremlin (que surge de uma das piores contra-revoluções da história, a do stalinismo).
Isto em grande parte foi possível porque ambos compartilhavam esse “verticalismo”, que constitui ao mesmo tempo não somente a negação da democracia operária, senão de que o poder, o Estado, seja realmente da classe trabalhadora e também, como veremos a continuação, da possibilidade de avançar na transição ao socialismo (dentro do que é possível para um pequeno país isolado).
No entanto, como sucede na biologia, esta “simbiose” associou a dois “sujeitos de diferentes espécies: 1) o regime verticalista (mas no fundo caótico e sem normas claras) do grande caudilho revolucionário, o Comandante Chefe que está acima de tudo e de todos; 2) o regime burocrático cinza, impessoal, conservador e petrificado do bloco soviético na era Brejnev. Na séria crise de princípios dos anos 90, os dois aspectos desta “simbiose” se manifestaram com clareza, e foi o primeiro deles, encarnado em Fidel Castro, o que voltou ao centro da cena. Apesar de tudo, continuava sendo o portador da legitimidade da revolução de 1959. E este foi um fator não menos importante para emergir nessa gravíssima crise.
Uma grande revolução democrática / anti-imperialista e popular que expropriou o capitalismo e conquistou a postergada independência nacional
O saldo da grande revolução de 1959 tem sido contraditório. Suas duas imensas conquistas foram a independência nacional e a expropriação do capitalismo (dois pontos que, como vimos, no caso de Cuba, estavam qualitativamente mais entrelaçados que em outros países latino-americanos).
É a partir dessa base (também aproveitando a rivalidade geopolítica entre o imperialismo ianque e o bloco soviético) que Cuba alcançou outras conquistas, como um desenvolvimento notável e muito mais igualitário na saúde e educação, e a erradicação da indigência e a extrema pobreza que castiga em maior ou menor medida a outros povos latino-americanos.
Ao mesmo tempo, não significou o estabelecimento de um estado ou poder operário, tampouco de uma economia de transição ao socialismo, duas coisas inseparáveis uma da outra. Não é automático que a partir da expropriação a economia rume ao socialismo. Tudo depende de quem conduza o automóvel e de como o faça. Por isso a Revolução Cubana foi anticapitalista, mas não chegou realmente a ser socialista.
Sobre estes pontos voltaremos extensamente no capítulo seguinte e em um texto separado. Mas, adiantamos que se tem alguma lição a tirar do lastimoso final de dezenas de “países socialistas” que apareceram (e desapareceram) na segunda metade do século XX é que neles não foi a classe operária e trabalhadora o sujeito político social que os conduziu, nem quem realmente exerceu o poder. A revolução socialista ou é encabeçada pela classe operária com seus organismos de massas e seus partidos ou não é revolução socialista.
Em Cuba, por um conjunto de fatores excepcionais, este lamentável final da restauração capitalista ficou adiado. Hoje, as pressões arrefecem nesse sentido. Simultaneamente, a classe operária cubana conseguiu um tempo extra para atuar antes que se consumem o que seria uma grave derrota para ela e os povos do continente.
A partir da defesa das grandes conquistas da revolução de 1959 – a emancipação nacional e a expropriação do capitalismo – se os trabalhadores se mobilizassem com independência e consciência de classe, poderiam impor outro desenlace.
4) Para evitar o retorno ao capitalismo e defender a independência nacional é necessário uma terceira revolução que de realmente o poder à classe
As revoluções estão fadadas à derrota, ou os homens podem fazer com que as revoluções sejam derrotadas? Podem ou não impedir os homens, pode ou não impedir a sociedade que as revoluções sejam derrotadas? Eu me faço a muito essas perguntas e veja o que digo: os ianques não podem destruir este processo revolucionário, porque temos todo um povo… que, não obstante nossos erros…jamais permitiria que este país voltasse a ser colônia deles…Mas esse pais pode autodestruir-se por si mesmo. Esta revolução pode destruir-se. Nós, sim, nós mesmos podemos destruí-la e seria culpa nossa. Se não somos capazes de corrigir nossos erros. “Se não conseguirmos pôr fim a muitos vicios; muitos roubos, muitos desvios e muitas fontes de subministro de dinheiro dos novos ricos” (Fidel Castro entrevistado por Ignacio Ramonet em Biografia a duas vozes, Barcelona, Debate, 2006).
Cuba conseguiu resistir no meio da derrubada dos ex-“países socialistas”. Valiosamente, a ilha permaneceu como uma exceção. O resto, de diferentes formas – uns mudando o antigo regime político (a ex-URSS e o Leste europeu), outros mantendo (China) – foram reabsorvidos completamente pelo capitalismo.
Em todos esses países, formou-se uma nova burguesia “nacional”, ou seja, uma classe exploradora autóctone, proprietária dos meios de produção e de cambio, junto com as empresas estrangeiras que têm investimentos aí. Com ritmos diferentes nos câmbios estruturais, as superestruturas jurídicas também expressaram essa transformação contra-revolucionária, voltando a consagrar o “direito” à propriedade privada dos meios de produção.
Porque em Cuba foi diferente nos inícios dos anos 90? Sob o olhar superficial de jornalistas, politicologistas e outros charlatães que ficam zunindo ao redor da ilha, teria sido esse o desenlace lógico, tendo em conta além do mais, as terríveis penúrias que esses anos iniciais do “período especial” significaram para o povo cubano.
Pensamos que aqui se combinaram fatores que, sinteticamente, fazem a profunda legitimidade da Revolução de 1959 e suas conquistas: em primeiro lugar, a independência nacional.
A restauração do capitalismo nesses momentos teria significado o regresso de Cuba ao status de protetorado quase colonial, a volta aos tempos da Emeda Platt. È como se na China a condição para a restauração capitalista tivesse sido a volta ao poder de Chiang Kai-Shek, o Kuomingtang e sua corrupta gangue de generais, junto com a devolução de toda a propriedade aos latifundiários, antigos capitalistas e empresas estrangeiras. E algo parecido na Europa do Leste e a ex-URSS.
Isto nos leva, uma vez mais, a relação peculiar do imperialismo ianque com a ilha – a qual considerou desde sempre quase como parte de seu próprio território – e mais que nada, do caráter da infame burguesia cubana. Já vimos como, desde antes mesmo da independência da Espanha, boa parte da burguesia e as elites cubanas viam os EEUU como sua verdadeira pátria a qual desejavam anexar a ilha (como sucedeu com Porto Rico), tal como denunciava Martí em várias passagens da sua carta póstuma. Se depois de 1898 isso não se realizou, não foi tanto porque as elites de Cuba se opuseram decididamente, senão principalmente porque a maioria em Washington preferiu outro status de dominação.
Com a revolução de 1959, a burguesia transladou-se maciçamente para os EEUU e logo se converteu em parte integrante da burguesia norte-americana. Não obstante, esses burgueses, seus filhos e netos – que hoje são todos norte-americanos – aspiram voltar a ilha e recuperar suas propriedades e domínio político. A maioria da burguesia estadunidense e seus dirigentes em Washington, tanto democratas como republicanos, apoiaram e ainda apóiam tal despropósito (existe uma minoria mais sensata que acha isso um disparate).
Assim, nos 90, não somente endureceram o bloqueio, senão que estabeleceram um minucioso registro do território na ilha e de seus “proprietários” nos EEUU, que voltariam a recuperar seus bens apenas após a queda da “tirania comunista” (Gott, cit., pp.302ss.).
Mas o “tudo ou nada” demonstrou ser uma aposta equivocada, tanto do imperialismo ianque como da burguesia gusana e seus descendentes. Isto fortaleceu a legitimidade do velho caudilho, que em momentos tão críticos e difíceis, voltou a ter um papel central, por cima das instituições calcadas da burocracia soviética.
A peculiar simbiose entre seu rol bonapartista de caudilho –“Líder Máximo” e “Comandante em chefe”- e as instituições do regime copiadas ao Kremlin voltaram novamente ao primeiro plano e se mantiveram até sua retirada.
Castro estabeleceu um jogo de “árbitro” entre a burocracia e as massas, colocando-se logicamente, por cima de todos. Depois de superados os anos mais negros do “período especial”, este rol peculiar chegou a se manifestar institucionalmente na formação de um “Grupo de Apoio” do Comandante em Chefe (que em Cuba recebeu o apelido de “os talibães”).
O Grupo de Apoio não era legalmente parte de nenhuma instituição estatal nem do partido único. Não obstante, sob as ordens diretas de Castro, intervinha onde quisesse, iniciando campanhas e atividades que não se discutiam nem decidiam em nenhuma instância do Estado, mas que interferia em todas elas (Farber, “Uma visita a Cuba de Raúl Castro”). Celia Hart, num texto publicado pouco antes do seu trágico acidente, o caracteriza como outro partido, um “partido novo” (C. Hart, “Cuba, em marcha revolucionaria… e sem Fidel”).
Assim começou em 1999 a chamada “batalha de ideias” que logo foi derivando numa intervenção em numerosos campos e que tratava de organizar setores da juventude, como “trabalhadores sociais” ad hoc (Paz Ortega, “The Battle of Ideas and the Capitalist Transformation of the Cuban State”).
Essas iniciativas foram dirigidas em grande parte para tentar conter os elementos de atomização e desmoralização social, produto da crescente desigualdade que acompanhou a recuperação da economia nos últimos anos. Como veremos mais adiante, isso se expressa na generalização da corrupção em todos os níveis, que se manifesta especialmente no roubo na propriedade do Estado.
Fidel e seu “Grupo de Apoio” desataram uma espécie de “guerra de guerrilhas” nesse terreno, cujas batalhas mais retumbantes foram as ações nos postos de gasolina, que tinham institucionalizado o furto do precioso combustível.
Mas a última “campanha guerrilheira” do “Comandante em Chefe” terminou numa derrota. Na realidade, era uma “missão impossível”. Logo, a retirada por enfermidade de Fidel significou também o fim das atividades do Grupo de Apoio.
Isso nos remete aos problemas econômicos e políticos chaves que estão abrindo novamente as portas para a restauração capitalista (ainda por vias diferentes as de Miami). O primeiro deles é a produção e a produtividade do trabalho, sem cujo desenvolvimento somente se “socializa” a escassez… e assim acaba se voltando ao velho sistema. O segundo é que esse desenvolvimento das forças produtivas não é possível sob o comando de uma burocracia que resolve tudo desde cima.
A transição ao socialismo, a produtividade do trabalho e os perigos atuais
A grande maioria do trotskismo do século passado acreditou que com a expropriação dos capitalistas, Cuba tinha se transformado “em uma economia de transição ao socialismo”.
O grande problema é que não foi assim, nem em Cuba nem no resto dos países que se autonomeavam “socialistas”. Como explicamos mais detalhadamente em outro trabalho, não houve tal “transição ao socialismo”, senão distintos e frustrados ensaios de economias nacionais planificadas burocraticamente, cujos fracassos – alguns catastróficos, como o “grande salto adiante” de Mao Tse-Tung, o conservadorismo da era Brejnev ou a “Perestróica” de Gorbatchov – levaram finalmente a restaurar o capitalismo em quase todos esses países.
Em Cuba esse processo ainda não se consumou. Não entanto, como apontamos na introdução, hoje a questão novamente é reaberta. Mais tardiamente, Cuba está num processo de mudanças que ameaçam levar a uma ou outra forma de restauração, com poderosas forças e transformações que operam nesse sentido. Para ver isso detalhadamente, convém primeiro retroceder aos problemas econômicos mais básicos que implicou expropriar ao capitalismo num país isolado e relativamente atrasado e, por adição, no nariz do mais poderoso imperialismo do planeta.
Desde o início, Cuba teve que enfrentar um duro bloqueio econômico dos EEUU, que nos anos 90 se agravou ainda mais com as leis Torricelli (1991) e Helms-Burton (1996). Os danos que este bloqueio tem causado na economia são enormes (Altercom, “O bloqueio contra Cuba é o mais brutal, cruel e prolongado da história”). Não entanto, atribuir exclusiva ou principalmente ao bloqueio os problemas econômicos é errado. Até mediados dos anos 80, a estreita relação com a URSS e a Europa do Leste permitiu obviar em grande parte este fator (J.-J. Alphandery, Cuba. A outra revolução, pp. 261ss.). Apesar disto, a economia cubana não foi florescente nesses anos, que estiveram balizados por desastres como a “safra dos 10 milhões de toneladas” e por falidos ziguezagues burocráticos similares aos do resto dos países supostamente socialistas. Logo, trás o afundamento da URSS e a catástrofe do “período especial”, o bloqueio não conseguiu fechar as relações econômicas e comerciais com outros países, que finalmente foram aumentando, ainda que Washington atuasse para obstaculizá-las.
As dificuldades econômicas de Cuba estão cruzadas por dois parâmetros que também foram fatais para o resto dos estados burocráticos. Um, é que a economia mundial, como totalidade, segue sendo capitalista. Cuba e também anteriormente os países ditos “socialistas” são meras economias nacionais que integram essa totalidade mundial. Perante isso, todas as burocracias sustentaram a concepção do “socialismo num só país”, e por tanto, sua bússola não foi a revolução mundial. Não entanto, as pressões da economia mundial foram atuando em cima desses falsos “socialismos nacionais”.
Dois, que as burocracias desses estados fracassaram rotundamente na conquista de produtividade do trabalho que, ainda que não estivessem ao nível do capitalismo mais desenvolvido, fosse pelo menos em assenso. Finalmente, a saída que encontraram para esse fracasso foi a restauração.
Já o problema da produtividade do trabalho esteve no centro do primeiro (e único) debate público de como organizar a economia depois da expropriação. Referimos-nos a famosa discussão entre o Che Guevara, então ministro de Indústria e vários economistas cubanos e estrangeiros, publicada em O grande debate da economia em Cuba. 1963-1964. Ainda que começasse com considerações abstratas sobre a “lei de valor” e os limites de sua vigência na economia cubana, o mais concreto e grande problema era como produzir mais e melhor e como interessar aos trabalhadores na produção26.
Nesse debate se confrontaram duas posições que esquematicamente, podemos resumir assim: os economistas que copiavam o modelo produtivo da URSS e dos países do Leste europeu defendiam o sistema de “autofinanciamento das empresas ou autogestão financeira”, que tinham como elemento importante ou fundamental o “estimulo material” [aos trabalhadores] de modo que… servisse para provocar a tendência independente ao aproveitamento máximo das capacidades produtivas, o que se traduz em benefícios maiores para o operário individual ou o coletivo da fábrica” (cit.,p 60, sublinhados nossos).
Pelo contrario, Guevara, além de defender como objetivo uma centralização financeira e produtiva total, põe ênfase em desenvolver a consciência socialista dos trabalhadores, através do que ele chamava “incentivos morais”. O “estímulo material direto” implicaria “o atraso do desenvolvimento da moral socialista” (cit., pp. 78ss.). O aumento de produtividade – segundo ele – tem a ver com “o cuidado coletivo dos custos [da produção]”. Para isso é necessário “centralizar o interesse da massa em rebaixá-los (…) se precisa uma aprofundamento da consciência” (cit., p.65).
Não obstante, isso para Guevara, que não via que a classe operária se constituía em um sujeito autodeterminado democraticamente, que deveria tomar realmente em suas mãos os meios de produção e decidir sobre eles 27. E então, ao senti-los autenticamente seus, poderia assumi-los como dona real e ter a efetiva tarefa de produzir (e fazê-los mais e melhor).
Guevara sustenta, com plena razão, que “o comunismo é uma meta da humanidade que se alcança conscientemente” (Che Guevara, cit., p.75). A partir deste princípio geral que toma de Marx, não extrai a conclusão de Marx (e do marxismo clássico) de que o desenvolvimento da consciência – o passo de classe “em si” (somente objeto ou “matéria para a exploração”28) a classe “para si” – está inseparavelmente unido ao desenvolvimento que alcance como sujeito da luta de classes.
Na esfera da produção, isso significa que, expropriado já o capitalismo, a classe operária passe a ser a classe dominante em realidade e não na ficção jurídica da “propriedade social” de que se fala (ou falava) nas Constituições dos estados burocráticos. Isso nos leva diretamente a política de se é a classe operária quem discute e decide democraticamente sobre todos os problemas (e também sobre a produção) no novo estado, ou se não decide nada e seu papel é apoiar (com distintos matizes de fervor, indiferença ou mal-estar) o que se decide sempre desde cima. Esse foi o problema de todos os estados burocráticos e segue sendo o de Cuba até hoje, para alcançar uma produtividade do trabalho comparável a do capitalismo.
Citaremos extensamente, um texto de Farber com considerações muito ilustrativas: “O velho ditado atribuído aos trabalhadores soviéticos e da Europa Oriental, segundo o qual ‘eles aparentam pagar-nos e nós aparentamos trabalhar’, se aplica em cheio a Cuba. È evidente na óbvia falta de cuidado, atenção e manutenção de todo tipo de propriedade pertencente ao setor público, desde os aviões até os hotéis, restaurantes, jardins e edifícios, não importa que tão recentemente ou quão belamente tem sido renovados.
“Se bem é certo que as dificuldades econômicas e o bloqueio estadunidense explicam a falta de material de construção necessário para realizar a obra de manutenção, isso não explica a ausência das simples atividades de labor intensivas que não requerem nenhum tipo de capital significativo, tais como limpar, varrer e o simples asseio diário.
“O problema fundamental consiste na falta de iniciativa, motivação e disciplina no trabalho e na administração. Através dos séculos, o capitalismo desenvolveu sistemas hierárquicos burocráticos em que os trabalhadores não têm ideia sobre o processo geral de produção. Os trabalhadores são obrigados a corresponder com certo nível de habilidade, aguilhoados pela política do garrote – ou produz, ou será despedido – e a cenoura – a promessa, e às vezes a realidade, de aumento salarial e uma promoção. “Os sistemas do tipo soviético não puderam desenvolver um sistema paralelo de motivação que se aproximasse da efetividade dos métodos capitalistas.
Os trabalhadores, nesse tipo de sistema igualmente, ou mais burocratizado e hierárquico, também não entendem para quê, nem como funciona o processo geral de produção.
“Um dos freios que o governo, como patrão único, tinha a sua disposição foi eliminado com a política de segurança geral do emprego (exceto para aqueles que se metem em problemas políticos com as autoridades). A falta sistemática de produtos, típica do que o economista húngaro Janos Kornai chamou de ‘economias de escassez’, se encarregou de eliminar uma boa parte das cenouras.
“Isso cria o contexto que nos permite entender por que os incentivos ‘morais’, com ênfase em sermões ascéticos, propostos por Che Guevara, são uma solução fundamentalmente equivocada ao dilema que acabo de descrever.
“O marxismo clássico, além de presumir que o socialismo se desenvolveria em sociedades com um nível relativamente alto de abundância material e culturalmente avançadas, enfatizava não os incentivos ‘morais’ mas o que se poderia chamar incentivos “políticos”, como o controle democrático da economia, do Estado e da sociedade, os quais os próprios trabalhadores controlam o trabalho.
“Conforme esta perspectiva, somente mediante a participação e controle de sua vida produtiva que as pessoas desenvolvem interesse e senso de responsabilidade pelo que fazem para ganhar a vida dia a dia. Só assim podem se importar e dar algo pelo que fazem. É neste sentido que a democracia operária se considerava tanto um bem em si – que as pessoas estivessem no controle de suas próprias vidas – como uma força econômica verdadeiramente produtiva.
“Na ausência de um foco alternativo, Cuba acabará sendo arrastada à ideologia e a prática do capitalismo. Ao ver que a pequena empresa – seja uma granja ou um pequeno negócio na cidade – está mais bem administrada e é mais eficiente que a grande empresa estatal, os cubanos já estão chegando à conclusão de que o capitalismo funciona melhor que o Estado quanto à disponibilidade de produtos de consumo” (Farber, “Uma visita…”).
A “disputa pelo indispensável” e o perigo da volta à “velha merda” capitalista
Em A ideologia alemã, Marx e Engels já tinham advertido que, depois da derrubada da ordem social existente, “um grande incremento da força produtiva, um alto grau de desenvolvimento… constitui uma premissa prática absolutamente necessária, pois sem ela só se generalizaria a escassez e, portanto, com essa imundícia, começaria de novo, a disputa pelo indispensável e se reporia necessariamente o conjunto da velha merda” (Marx e Engels, Die deutsche Ideologie, pp.34-35).
Uma estudiosa especialista em Cuba, partidária não somente da Revolução Cubana senão também especificamente de Fidel e seu regime, faz esta pintura, que também vale a pena citar extensamente, da situação atual e das dimensões trágicas e perigosas que alcança esta “disputa pelo indispensável”.
“Se mede mal desde Europa a gravidade da crise social que afeta a ilha. Adotada em 1993, a dolarização em vigor até 2004 [em que se substituiu o dólar pelo CUC, peso cubano conversível ao dólar que existe junto ao antigo peso] tem modificado a hierarquia salarial anterior, bastante igualitária.
“A dualidade monetária [CUCs e pesos}e a taxa de cambio entre o dólar e o peso tem afetado profundamente aos trabalhadores cubanos do setor público, cujas rendas são em pesos. A falta de investimentos, os transportes estão degradados, o estado das vivendas (em número muito insuficiente) é desastroso, a alimentação é muito cara nos supermercados ou nos mercados camponeses livres e a caderneta (o carnê de racionamento) não permite se alimentar por mais que durante 10 ou 12 dias. Os cortes de eletricidade por várias horas representavam faz pouco tempo uma moléstia insuportável, antes da instalação recente em toda a ilha, sob o impulso de Fidel, de grupos de geradores. De modo geral a infra-estrutura (canalizações de água, entre outras) estão em muito mal estado.
“Havana, ao perder seus aliados mais próximos, se acha isolada no plano internacional, confrontada as políticas neoliberais em pleno auge no continente latino-americano nos anos 90. Para fazer frente à crise, Fidel teve que aceitar com reticências reformas econômicas mercantis (legalização do dólar, autorização dos mercados livres camponeses anteriormente proibidos, atividades privadas, cooperativas na agricultura, investimentos estrangeiros, desenvolvimento do turismo, etc.). Estas reformas, ainda que limitadas, iam introduzir desigualdades muito importantes entre os cubanos, opondo quem não tinha aceso ao bilhete verde e aqueles que tinham acesso graças aos envios (remessas) da família no estrangeiro ou as consequências do turismo. Essas desigualdades foram muito mal suportadas, a promoção social que tinham desfrutado as camadas mais pobres desde a revolução, foi posta em questão, inclusive se os cubanos seguiam gozando de saúde e educação gratuita. Dai em diante, o dólar era o rei, independentemente das competências profissionais. ‘A pirâmide social tinha se invertido’ e com ela os ‘valores’ e a ética da Revolução.
“(…) A crise econômica, as reformas e a brecha aberta no setor público provocaram um recrudescimento da corrupção. O mercado negro prospera alimentado pelos roubos no setor estatal. O auge das atividades privadas num sistema no qual a extrema centralização estatal não consegue responder as necessidades da vida cotidiana tem favorecido o desenvolvimento da economia informal: encanadores, mecânicos, pintores, exercem sua atividade ao mesmo tempo em que salvaguardam sua afiliação numa empresa estatal para preservar direitos sociais. È também na sua empresa onde se procura os materiais necessários para o exercício da atividade privada. O último exemplo é o dos roubos massivos de gasolina nos postos de serviço, com a cumplicidade dos empregados dos mesmos. Descobriram em 2005 por um exército de jovens trabalhadores sociais mobilizados por Fidel Castro, que as perdas engendradas por esses roubos seriam da ordem de dezenas de milhões de dólares. Não é difícil imaginar os benefícios retirados pelos revendedores, os quais podiam ser por outra parte, revolucionários convencidos.
“A dupla moral’ em Cuba se entende e justifica pela impossibilidade de viver ‘normalmente’, pois como falam muitos cubanos, para sobreviver nestas condições ‘ tem que roubar ou abandonar o país’, ou bem afundar. Resumindo, as tensões econômicas, sociais, políticas, demográficas impõem uma mudança de orientação. Mas em qual direção?
“(…) A situação que herda Raúl Castro é paradoxal. A bonança econômica que conhece o país graças aos preços elevados do níquel, a progressão das rendas com o turismo (em torno de 2.3000.000 visitantes este ano), aos intercâmbios benéficos com Venezuela e China, não atenuaram as dificuldades dos cubanos que trabalham no Estado (uns 75% da população ativa) ou dos que dependem aposentadoria escassa. São eles os que têm suportado o peso da crise, os mais afetados pelas reformas econômicas e as disparidades do poder de compra que produzem as mesmas. Se beneficiam pouco da melhora macroeconômica. Em contrapartida, emergem novas categorias sociais, ‘novos ricos’ segundo a terminologia oficial: pequenos artesãos e empresas privadas cujo auge coincide com a liberalização dos anos 90, proprietários de pequenos restaurantes (paladares) que não podem servir mais que 12 talheres por vez, pequenos camponeses que vendem nos mercados suas produções agrícolas a preços muito elevados. Setores que aproveitaram as penúrias para oferecer bens e serviços que o Estado não garantiu nunca, enquanto que o status da pequena produção mercantil sempre foi demonizado.
“Neste contexto, a enésima ofensiva lançada por Fidel Castro em 2005 contra a corrupção esteve condenada ao fracasso. Paralelamente, Fidel Castro levou a cabo uma campanha ideológica para mobilizar a população: “a Batalha das Ideias”. Mas esta ’batalha’ é uma abstração para os cubanos submergidos nas dificuldades cotidianas e que, em graus diferentes, recorrem ao mercado negro para sobreviver. Tanto mais quando a propriedade do Estado não é percebida pelo povo, contrariamente ao discurso oficial, como sua propriedade, senão como uma propriedade que é estranha. Os cubanos não influem em nada nas decisões econômicas” (Janette Habel, “O castrismo depois de Castro. Um ensaio geral”, sublinhado nosso).
Essas formas de atomização da sociedade e da classe trabalhadora – todos roubam ou fazem negócios mais ou menos ilegais por conta própria, desde o burocrata que dirige uma empresa até o último empregado – são filme já visto29. Foi o prólogo social necessário – tanto na URSS de Brejnev como na China de Deng Xiao-Ping – da volta ao capitalismo. Antes de restabelecer juridicamente a propriedade privada dos meios de produção, já se restabelece a “luta de todos contra todos” própria do capitalismo e em forma “quimicamente pura” 30.
As conseqüências negativas disto se agravam pela combinação com a desigualdade crescente. “O principal efeito das reformas dos anos 90 foi uma clara diferenciação social. ‘Sem nenhuma dúvida – explica Fernando Martínez Heredia31– esta é muito menor em comparação com a de outros países de América Latina e do mundo. Mas para Cuba é extraordinariamente significativa… Não obstante, não podemos dizer já que há diferentes classes sociais’.
Esta diferenciação social constitui um desafio ao principal elemento de legitimidade do sistema” (Jan Konrad, “The Cuban Revolution at the Crossroads”, sublinhado nosso).
Desde que Martínez Heredia indicara o caráter extraordinariamente significativo que tem no caso de Cuba a desigualdade, esta tem aumentado notavelmente, ao ritmo do grande crescimento da economia nos últimos anos 32. Esse crescimento não chega a todos por igual, pelo qual seu efeito sobre a “legitimidade do sistema” é muito negativo.
Concretamente, para as pessoas, as frases rituais sobre o socialismo soam cada vez mais ocas à medida que a desigualdade cresce. Além do que, as privações que apareciam como justificadas perante o gravíssimo perigo a princípios dos anos 90, hoje se dão em meio a pior crise econômica, política e militar do imperialismo ianque desde a Segunda Guerra Mundial.
O caminho da restauração e as duas variantes
No inicio deste artigo apontamos as duas variantes concretas de restauração capitalista. A primeira, um colapso do regime ao estilo do que sucedeu na ex-URSS e o Leste Europeu. Essa é a alternativa auspiciada desde Miami. Hoje, não aparece como a mais provável. Não obstante, não se pode subestimar a pressão – nada fácil de medir – dos elementos de atomização e desmoralização que já assinalamos e que poderiam empurrar para essa “saída”.
Neste sentido, é especialmente preocupante uma brecha que todos coincidem em indicar: a “brecha de gerações” (e cultural) entre os que chegaram a viver conscientemente a revolução de 1959, os que nasceram ou cresceram na relativa estabilidade, igualdade e bem-estar da etapa pré-Muro de Berlim e os que somente conheceram a etapa atual (as penúrias do “período especial”), o crescimento da desigualdade e a caça do dólar e logo do CUC. Entre estes últimos, lamentavelmente os mais jovens, poderia estar perigosamente mais esmaecida a legitimidade da revolução de 1959 e a importância da conquista da independência nacional perante os EUA… e nem falaremos da expropriação do capitalismo.
Tudo isso, logicamente é difícil de dimensionar em um regime que bloqueia nos setores operários e populares qualquer debate político que não esteja nos trilhos dos aparelhos. Em Cuba, como nos outros casos de estados burocráticos, também funciona o “duplo pensamento” de Orwell… ainda que agora em menor medida que no período de congelamento brejneviano de 1968-1990.
Seja como for, a principal variante restauracionista que já está em marcha corre pela outra via: o “modelo chinês”. Voltando a Farber:
“Tem muitos indícios da inclinação total de Raúl Castro em direção ao modelo chinês. Já em abril de 2005, Raúl falava: ‘Há pessoas que estão preocupadas com o modelo chinês, eu não. China prova que outro mundo ainda é possível’(…) “Muito mais importante que tais ou quais declarações é o rol que joga o Exército cubano, o baluarte de Raúl, como grande ator nas joint-ventures [empresas conjuntas], incluindo a indústria do turismo. Um número expressivo de oficiais do Exército são homens de negócios em uniforme, profundamente envolvidos em transações com o capitalismo internacional através das Forças Armadas cubanas. Os militares também estão envolvidos no processo chamado de ‘Aperfeiçoamento Empresarial’, de eficiência organizativa, que é o tipo de experimentação econômica coerente com o modelo chinês (…)”
“A questão é que classes de forças sociais existentes em Cuba estão se mexendo nessa direção (…) O setor de pequenas empresas foi diminuindo bastante desde as concessões dos anos 90. Nunca foi importante…Em contrapartida, vejo que o ímpeto provem de gente das Forças Armadas e de civis fora delas que já estão envolvidos no capitalismo das joint-ventures” (Farber, Sam, “Cuban Reality Beyond Fidel”, sublinhados nossos).
Efetivamente, o setor de empresas do Estado e joint-ventures administrado pelos “homens de negócio uniformados” constitui hoje o epicentro da economia cubana 33. E é o que recebe mais diretamente, junto com os administradores civis das joint-ventures, as pressões diretas do grande capital internacional (Farber, “The Cuban Army and the ‘Chinese Road’”).
Em meados de 2009 ia se realizar o VI Congresso do partido único, o PCC. Este evento estava sendo postergado por mais de um decênio. Os debates começaram em 1997! Logo foram suspensos e o congresso foi adiado indefinidamente. A necessidade de legitimar Raúl e, sobretudo, decidir o rumo que iriam tomar, obrigava a manter esta instância.
Essa discussão decisiva segue fechada nas alturas da burocracia. Os anteriores congressos do PCC seguiram as normas verticalistas copiadas de Moscou, sem reais debates nem confrontação de ideias. Agora, desde cima, continuam sem falar claramente34. Não obstante, não é possível se confundir a respeito de para onde sopra o vento desde a cúpula. Basta ler os artigos de elogios disparatados a China que aparecem na imprensa oficial. O pior é que apresentam ao sistema chinês como socialista: “Graças a seu regime socialista apareceu uma nova locomotiva na economia mundial, a China dirigida pelo Partido dos Trabalhadores… A China do socialismo é capaz de resistir os embates da recessão”, se afirma em Granma (Raúl Valdés Vivó, “Crise da tirania mundial do capitalismo”).
Faz muitos anos, muito antes que Granma, a burguesia mundial aplaude admirada a China, pois tem se convertido na locomotiva capitalista da economia mundial. Granma, junto com algum boletim da extrema direita ianque, devem ser as únicas publicações no mundo que seguem falando que a China é “comunista” ou “socialista”.
Alguém então tem que estar equivocado. Não achamos que seja a burguesia mundial, que tem um sensor infalível ao respeito: o bolso. As super ganâncias obtidas na China pelas corporações – que há convertido esse país na Meca das multinacionais – se devem a uma exploração sangrenta e uma escravidão no trabalho como o mundo não via desde os primeiros tempos do capitalismo. Por trás dos elogios ao “socialismo chinês”, esse é o modelo que se apresenta aos trabalhadores e ao povo cubano35!
Debates na esquerda: oportunismo e sectarismo
A situação de Cuba está motivando lógicos debates em toda a esquerda latino-americana, mundial e também entre os trotskistas. A restauração capitalista e a recolonização de Cuba seriam uma grave derrota. Seus efeitos, especialmente na América Latina, aprofundaram o impacto negativo e as confusões que ainda perduram por trás do fim dos “países socialistas” da Europa e Ásia no século passado.
Nesses debates e posicionamentos aparecem o que, em nossa opinião, são dois erros simétricos: posições capituladoras por um lado e sectárias por outro. Os companheiros que protagonizam essas visões que achamos erradas são os mesmos que viemos criticando a respeito ao chavismo, por posições similares.
Assim, quem se agrupa ao redor de Revistas de América (MÊS-PSOL de Brasil, MST de Argentina, MPP de Panamá e outros) se localizam como “ala esquerda” (e às vezes nem isso), no mesmo campo do regime cubano, às vezes com algumas críticas menores. Por outro lado, correntes como o PSTU-LIT repetem os perigosos erros sectários que têm em relação ao processo venezuelano. Seu voto pelo NÃO no referendum constitucional venezuelano e sua visão de aspetos “progressivos” dos estudantes esquálidos fazem jogo com uma perigosa posição antidefensiva a respeito de Cuba, onde já dão por restaurado o capitalismo e inclusive praticamente recolonizado o país.
Vejamos, em primeiro lugar, os pontos de vista da corrente Revista de América, que se identificam com os de Celia Hart, recentemente falecida.
O ponto essencial é que confundem a defesa das conquistas da revolução – coisa que não está em discussão – com a defesa (às vezes crítica, mas no geral incondicional) da direção cubana, ou seja, da burocracia “revolucionaria”. Um bom exemplo é dado por Olmedo Beluche, quem mais se tem ocupado do tema Cuba nesta corrente, cujas opiniões coincidem expressamente com as de Celia Hart. Depois de examinar uma série de problemas econômicos e políticos que se apresentam em Cuba, Beluche conclui: “O dilema político está, para os que aspiramos a novas revoluções sociais, em achar a fórmula algébrica entre dois extremos indesejáveis: um regime autoritário, como o de Stalin e uma inocente democracia que seja rapidamente devorada pelo lobo capitalista. (…)
“Aqui, como no plano econômico e político também, temos que distinguir entre o objetivo programático desejável e as condições que impõe a realidade concreta. Das palavras antes citadas de Trotsky se desprende que, dadas as condições das forças produtivas dos países nos que, até agora, se deu a revolução socialista, certo grau de burocratismo é inevitável. (…)
Cuba, com todas as suas limitações e contradições, é para o movimento socialista mundial e para os antiimperialistas da América Latina nossa conquista e nossa primeira trincheira de combate. Temos que sustentá-la como baluarte. Temos que apoiá-la criticamente (outra coisa não seria marxista), pois sua derrota seria a derrota de todos.
“Ao final, todas as contradições internas dos estados operários de transição ao socialismo somente poderão se resolver se o processo de luta pelo socialismo avança em todo mundo, especialmente nos países capitalistas desenvolvidos. Por isso, às vezes é preferível ser indulgente com os erros, as limitações e as deformações que podemos encontrar em Cuba…
“Mas também a direção cubana deve compreender, e creio que assim o faz, ao menos boa parte dela, que seu futuro depende de novas vitórias revolucionárias em todo o mundo. O contrário implicaria, em longo prazo, a morte e a contra-revolução” (Beluche, “Reflexões sobre o socialismo de século XXI”, sublinhado nosso).
Se quiséssemos escrever um decálogo de “realismo” (ou seja, oportunismo) político – de adaptação ao “mal menor” e “o possível”- o companheiro Beluche nos proporciona uma sólida base para isto. Como “certo grau de burocratismo é inevitável”, então boca calada perante o problema da burocracia. O de Stalin foi muito mal… porém a democracia é uma “inocência”, pois nos devora o lobo capitalista. A esta chapeuzinho “Vermelha” (ou melhor, rosa), que além do mais se diz trotskista, nem cogita que há uma diferença total entre a podre democracia burguesa (que não tem uma grama de inocente) e democracia operária e socialista, que é o que não existe e tem que reclamar em Cuba!
Em quanto aos problemas atuais e bem concretos de Cuba – como a desigualdade crescente e os propósitos explícitos de setores da burocracia de adotar o modelo restauracionista chinês – o companheiro os remete… a revolução mundial. Somente ela os pode solucionar, se não o faz, lamentavelmente “implicaria, em longo prazo, a morte e a contra-revolução”.
Esta acrobacia de argumento lhe permite pular por cima das responsabilidades concretas da “direção cubana”, quer dizer, da burocracia (dentro da qual se alenta essa tendência desde o núcleo principal): “Mas também a direção cubana tem que compreender, e acho que o faz, ao menos boa parte de ela, que seu futuro depende de novas vitórias revolucionarias em todo o mundo”.
A posição do PSTU-LIT é o reverso igualmente equivocado de tudo isso. Brevemente, o PSTU-LIT considera não só plenamente restaurado o capitalismo senão também praticamente colonizado ou semicolonizado o país. Além do que parece incapaz de distinguir entre uma burocracia privilegiada e uma classe social orgânica como a burguesia.
Segundo o PSTU-LIT, o processo de restauração em Cuba “se diferencia bastante do que se deu na Rússia e na maioria dos países do Leste Europeu. Na essência, a restauração em Cuba tem seguido o modelo chinês. As semelhanças entre o processo chinês e cubano podem ser observadas, fundamentalmente, em quatro planos. (…) Em primeiro lugar, as reformas pró-capitalistas foram se fazendo de forma lenta e gradual. Em segundo, o capital externo tem jogado um papel central no processo de restauração. Em terceiro lugar, as empresas estatais em ambos os países jogam e continuaram jogando um papel muito importante, de respaldo às empresas particulares. Em quarto lugar, a diferença da Rússia e da maioria dos países do Leste é que a restauração não está sendo feita sobre a base de entregar aos operários e a população as ações das empresas” (M. Hernández, “Cuba em debate”, sublinhado nosso).
Assim mesmo, Cuba “está em vias de se transformar numa semicolônia, ou diretamente em uma colônia, do imperialismo” (idem). Em outro texto desta corrente se afirma que “Cuba está perdendo seu caráter de país independente e marcha aceleradamente a se transformar em uma semicolônia dos imperialismos europeus e canadense”. Como este primeiro texto de Hernández foi escrito em 2000 e, segundo ele, a restauração teria se produzido já em meados dos anos 90, é de supor que nessa marcha tão acelerada, já hoje Cuba está praticamente sob a dependência semicolonial da União Européia e Canadá.
Acreditamos que os companheiros estão muito equivocados. Cometem um erro perigoso e lamentavelmente frequente: confundir primeiro mês de gravidez com o nono, ou pior ainda, com uma criança já nascida. Esse erro, tanto na medicina como na política, costuma ter consequências muito graves.
Efetivamente, como já dizemos, a burocracia cubana, pressionada pelo desastre do “período especial”, tomou medidas, tanto para fora na economia mundial, como para dentro da ilha, que em suas mãos – quer dizer, administradas pela burocracia-, abrem a porta ao processo de restauração capitalista.
Já apontamos também, que o setor da alta burocracia que administra as joint-ventures e, em geral os setores mais rentáveis da economia, vê com admiração os “êxitos” da burocracia chinesa, convertida em burguesia bilionária. Porque este é o ponto crucial que – não por casualidade – escapa aos “teóricos” do PSTU-LIT. O problema não é fazer a soma e resta de medidas econômicas isoladas (que efetivamente em mãos da burocracia são perigosíssimas), senão responder a uma simples pergunta: onde está a “nova burguesia cubana?” Vive na clandestinidade? Reside no Canadá ou em Europa?
Colocar já um sinal de igual entre Cuba e China é um despropósito. A nova burguesia chinesa tem endereços conhecidos, opera na bolsa de Shanghai (uma das mais importantes do mundo), preside empresas milionárias absolutamente privadas das quais não são meros administradores burocráticos, senão proprietários em todo o sentido capitalista do termo. A nova grande burguesia se originou em grande parte da mesma burocracia maoísta (e segue fusionada com ela), mas já não são simples burocratas 36. Em Cuba, nem sequer na escala modesta da ilha, se pode falar ainda de um fenômeno social semelhante. Ou seria o primeiro caso de um país semicolonial cuja burguesia não é nativa, senão européia ou canadense?
Isto não significa insistirmos que o curso de um setor fundamental da burocracia cubana não aponte nessa direção… mas ainda não chegou. Isso é decisivo para formular uma política revolucionaria a respeito de Cuba! Esclarecer isso é muito importante, pois o erro do PSTU-LIT leva inevitavelmente a conclusão de que há pouco ou nada que defender em Cuba e que da revolução de 1959 não ficou praticamente nada.
Assim mesmo, isso pode dar lugar a confusões políticas ainda piores. Se no dia de amanhã os grupos dissidentes de centro-direita, alentados e financiados desde Miami e a “Oficina de Interesses” dos EEUU em Havana, chegarem a tomar força num setor de massas, já estamos vendo os companheiros do PSTU-LIT falar da “luta democrática” ”contra a “ditadura do estado burguês cubano”.
Por uma nova revolução cubana, que defenda as conquistas de 1959 e estabeleça realmente o poder da classe trabalhadora
Não vemos muitas possibilidades de status quo. Nem as contradições e tensões da sociedade cubana, nem a presente situação mundial e latino-americana (com crises e câmbios notáveis a nível econômico e geopolítico) facilitam o imobilismo.
O futuro de Cuba se resolverá em função de que forças sociais imponham finalmente seus interesses. Nesse sentido, como já assinalamos no início deste texto, tem somente três forças sociais que potencialmente poderiam impor rumos próprios: 1) a burguesia gusana, que tem a radical desvantagem de estar fora da ilha, mas que recebe o respaldo do imperialismo ianque e que possivelmente poderia contar com setores “populares” difíceis de medir, alimentados pelos elementos de desmoralização e decomposição social que temos descrito e pelas relações familiares e culturais com a comunidade cubana dos EEUU; 2) a alta burocracia administradora do Estado, encabeçada pelos especialistas militares que estão a frente das joint-ventures e outros setores dinâmicos da economia, que marchariam, em primeira instância, para o capitalismo de Estado; 3) a classe operária, única força social cuja hegemonia abriria realmente uma transição ao socialismo 37.
Até agora, nesse triângulo de interesses sociais tão contraditórios, é a segunda alternativa a que parece mais provável, enquanto que da terceira, a da classe operária, apenas se percebem de vez em quando algumas faíscas independentes. Não obstante seria um grave erro dar já por decidida a partida, como fazem de fato, as correntes que dão por restaurado o capitalismo e, inclusive, estimam também perdida (ou semiperdida) a independência nacional de Cuba. Nada está já totalmente decidido e definido. A mesma reconvocatória ao eterno VI Congresso (que nunca se realiza) indica a necessidade da burocracia de obter um consenso e legitimar um rumo. Esta reconvocatória foi precedida, em setembro de 2007, pelo chamado a um “debate nacional” para que a população manifestasse suas opiniões, especialmente sobre a economia.
Os fins dessa política são obviamente processar através de canais burocráticos uma discussão (e um descontentamento) que já está amplamente instalado. Assim o espelhou o incidente do presidente da Assembléia Nacional, Ricardo Alarcón, em fevereiro passado, com os estudantes da Universidade de Ciências da Informática, quem não conseguiu responder seriamente a perguntas fundamentais, como “porque o comércio interior de todo o país migrou ao peso conversível, quando nossos operários, nossos trabalhadores e nossos camponeses recebem salário em moeda nacional, que tem 25 vezes menos poder aquisitivo?”Mas, contraditoriamente, medidas como o “debate nacional” e a nova convocatória ao VI Congresso podem pôr também em estado de assembleia setores importantes de trabalhadores, estudantes e intelectuais; ou seja, um transbordar em uma situação na qual o controle da burocracia é muito mais débil que no período 1968-90, e sua legitimidade também mais questionada.
Por alguns textos e debates que vão transcendendo pela Internet, a margem da cúpula burocrática, mas situados no campo do socialismo e o anti-imperialismo, aparece uma lógica preocupação programática nestas discussões.
- Logicamente, nesse sentido não podemos formular um programa detalhado, menos ainda completo. No entanto, é também imprescindível esboçar algumas linhas importantes, porém parciais:
- Pela defesa das conquistas revolucionárias de 1959, em primeiro lugar a independência nacional e a expropriação do capitalismo e também os avanços que ainda se mentem em matéria de saúde, educação, emprego, aposentadoria, etc.
- Pelo fim ao regime de partido único e de estatização dos sindicatos e demais organizações operárias, populares, juvenis, femininas, etc. Plena liberdade de organização política, sindical e associativa dos trabalhadores, estudantes e setores populares que defendam as conquistas de 1959, especialmente a independência nacional e a expropriação do capitalismo e repudio ao bloqueio imperialista. Pela constituição de um partido ou instrumento político operário e socialista, independente da burocracia.
- Pela democracia operária e socialista. Nem “democracia” burguesa fraudulenta estilo Miami, nem “voto unido” pela lista única da burocracia. Que as organizações de massas operárias, camponesas, estudantis e populares, com funcionamento absolutamente democrático, designem o governo de Cuba e debatam e decidam os planos econômicos e políticos.
- Nem plano econômico burocrático, nem anarquia capitalista. Democracia socialista para determinar o plano econômico e verificação pelo mercado de sua realização. Pela administração e/ou controle operário democrático de todas as empresas, com absoluta publicidade de suas operações, como forma principal de avançar na produtividade e terminar com o saque da propriedade nacionalizada. Por uma moeda única.
- Brecar e reverter o crescimento da desigualdade.
- O isolamento nacional da economia cubana e o baixo desenvolvimento das forças produtivas fazem impossível abolir “por decreto” a lei do valor e as relações mercantis, como se tentou em algum momento. Isso concretamente implica perigosas concessões em dois sentidos: para fora, ao capital estrangeiro: para dentro a setores do campesinato e a pequena burguesia urbana. Porém o controle e manejo de tudo isso não pode ser a tarefa da burocracia que não rende contas a ninguém. A total transparência da democracia operária e socialista tem que ser o contrapeso perante estas sérias pressões, sobretudo as mais perigosas, as que provêm do capitalismo mundial.
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Notas
1 Andrés Oppenheimer, Castro´s Final Hour: the secret story behind the coming downfall of Communist Cuba, Touchstone (Simon & Schuster), New York, 1993.
2 Não analisaremos aqui o estranho caso da monarquia “socialista” da família Kim na Coréia do Norte. Não bastassem as faíscas que se produzem de quando em quando nas suas relações com os EUA, não tem a menor relevância revolucionária, nem política nem histórica. Seu estabelecimento não foi consequência de uma revolução senão um subproduto da Segunda Guerra Mundial, semelhante ao ocorrido no Leste da Europa. Concretamente, foi consequência da tardia intervenção em 1945 das tropas da União Soviética na guerra contra o Japão e de sua ocupação no norte da península coreana, enquanto os EUA faziam o mesmo no sul. A guerra da Coréia de 1950-53 – episódio importante no seu momento, da “Guerra Fria”-, o posterior congelamento da divisão da nação coreana e a situação da “paz armada” que se prolonga até hoje (com um dispositivo bélico estadunidense que segue apontando na verdade para China e Rússia), obstaculizaram o curso “normal” de reabsorção pelo capitalismo que seguiram China e Vietnã.
3 A Emenda Platt, que analisaremos mais adiante, foi uma imposição dos EUA na Constituição de Cuba que a convertia de fato num protetorado colonial.
4 O debate tomou-se público numa oportunidade em que estavam presentes Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Nacional, e estudantes cubanos, ver edição de 24/2/08 de www.socialismo-o-barbarie.org
5 Como sucedeu nos anos finais dos ex “países socialistas”, o crescimento da corrupção em todos os níveis, que tocaremos mais adiante, é um fiel indicador de como os laços de solidariedade social e de classe são substituídos pela luta individual de todos contra todos. É nesta “atmosfera” social que prosperou a restauração, tanto na URSS e o Leste como na China.
6 Tem que sublinhar que uma das principais objeções contra a anexação direta de Cuba, não foi por dar-lhe uma quota maior de independência, senão por sua grande porcentagem de população negra e mulata. O “modelo egípcio” de colônia solucionava esse problema tão grave para o racismo imperialista ianque (Gott, cit., pp. 108ss.).
7 Mella, sua figura mais destacada, seria logo sancionado pelo PC cubano. Mella começa a simpatizar com a Oposição de Esquerda, que teria conhecido pelo intermédio de Andrés Nin (cf. C. Hart, ”Julio Antonio!… Até depois de morto”). Em 1929, Mella foi assassinado no México, onde estava exilado, aparentemente por um assassino da ditadura de Machado. O texto de Celia Hart insinua que suas diferenças com o nascente stalinismo foram as causas desse desenlace. Outras fontes acusam rotundamente como responsável Vitorio Vidali, um agente de Stalin que anos depois se faria famoso como torturador e assassino de Nin na Espanha e de outros dirigentes de esquerda não estalinistas. De todo modo, após a morte de Mella, o PCC apropriou-se de sua popular figura tratando de ocultar seus “pecados” trotskistas.
8 Logo depois das políticas oportunistas que levaram à catástrofe a revolução na China de 1925-27, Stalin deu uma virada ultra-esquerdista. Em 1928, proclamou que tinha se iniciado um “terceiro período” que seria a etapa final do capitalismo. Essa falsa caracterização foi o pretexto para que a Internacional Comunista adotasse uma orientação ultra-esquerdista, aventureira e oposta às táticas de frente única operária. O principal resultado disto foi o triunfo sem luta de Hitler na Alemanha e a ascensão do fascismo em toda Europa. Aterrorizados por estes desastres, o stalinismo deu um giro definitivo para o oportunismo e a colaboração de classes, inaugurando em 1934-35 a linha de “frente popular” com setores progressistas e/ou “democráticos” da burguesia
9 Com a importante exceção de Fulgencio Batista, que veremos logo.
10 Efetivamente, Castro reedita não somente o discurso populista radical e anti-imperialista de Guiteras (1906-1935), senão inclui alguns de seus episódios. Antes da caída de Machado, Guiteras tenta tomar o quartel Moncada e é preso, como Fidel. Em 1935, ante o triunfo da contra-revolução, Guiteras planeja ir ao México para organizar uma força que desembarque na ilha e inicie uma guerra revolucionária. Ou seja, o mesmo que faria Castro 20 anos depois. Mas Guiteras é assassinado em Cuba, antes de partir. Na realidade, as impressionantes semelhanças se explicam porque ambos seguiam o modelo das guerras de independência do século XIX, desde as ações práticas até aspectos mais ideológicos.
11 Junco havia militado no México com Mella, quando esse também se aproximava da Oposição de Esquerda. Em 1942, Junco foi assassinado em um comício por um grupo armado do PC (então chamado Partido Socialista Popular), que nesse momento tinha dois ministros no governo de Batista.
12É importante sublinhar isso, porque na esquerda latino-americana há desconhecimento acerca do fato de que Cuba não era, nos anos 40 e 50, um país extremamente atrasado em relação ao resto da América Latina, como por exemplo, Haiti e Honduras. Um bom exemplo o dá Martin Hernández, do PSTU-LIT (que para cúmulo aparece como o ‘especialista’ dessa organização em temas cubanos), quando afirma que “Cuba era um dos países mais pobres, mais miseráveis da América Latina” (M. Hernández, “Debate entre a LIT-CI e a delegação cubana no Fórum de Porto Alegre”).
Porém, contra o que crê Hernández, Cuba era um dos países mais desenvolvidos da América Latina, com um PIB per capita somente inferior ao da Argentina e Uruguai, e com um nível de vida melhor que o da Espanha naquele momento. Na realidade, se Cuba houvesse sido “um dos países mais pobres, mais miseráveis da América Latina” (como imagina o ‘expert’ da LIT-PSTU), provavelmente não se haveria produzido revoluções como as de 1933 e 1959. É que Cuba era um caso extremo – como em seu momento, Rússia – de desenvolvimento desigual e combinado. Por isso, dialeticamente, a sociedade cubana estava submetida a tensões formidáveis, econômicas, sociais e políticas, agravadas pela dependência quase colonial com os EUA e a volatilidade do mercado mundial do açúcar, que agregava um fator estrutural de instabilidade.
Em sua formação econômico/social, aspectos avançados quase à altura dos EUA se entrelaçavam com o mais terrível atraso; setores com nível de vida de Miami ao lado da extrema miséria. Este extremo desenvolvimento desigual e combinado vem de longe. Na década de 1930, Cuba tinha estradas de ferro quando na Espanha ainda não havia nem um metro de trilhos. Não obstante, Cuba (com Porto Rico) era a única colônia que ainda pertencia a um império espanhol na América! É curioso notar que muitos “politicologistas” e historiadores de direita sustentam uma tese simetricamente oposta à de Hernández, porém, baseada nas mesmas concepções. Eles afirmam que Cuba não era “um dos países mais pobres, mais miseráveis”, então a revolução – injustificável – só se explica por uma “conspiração comunista” urdida de cima, pelos irmãos Castro e Che Guevara, agentes de Moscou. Ambas as visões têm em comum (e equivocadas) a concepção implícita de que a miséria é a mãe exclusiva das revoluções. Na realidade, os processos político-sociais são muito mais dialéticos.
13 A exceção foram as da ala radical do “governo dos cem dias”, Guiteras, Chibás e outros. Especialmente Guiteras era famoso por sua austeridade jacobina: sendo ministro tinha um só traje.
14 Por um lado, o PSP era rechaçado desde a direita. Pelo outro, também à esquerda, porque era visto como parte da infame “politicaria”, termo com o qual os cubanos englobavam os enxágues corruptos nos governos, partidos e sindicatos, nos quais os estalinistas tinham participado notoriamente. Uma das grandes vantagens de Fidel seria a de apresentar-se como um homem novo, um lutador abnegado, de honestidade intocável, alheio à podridão da “politicagem”.
15 Inicialmente, o chamado de Guevara de fazer “um, dois, três Vietnãs” e as atividades que encabeçou pessoalmente, primeiro na África e logo na derrotada guerrilha da Bolívia, onde encontrou a morte em 1967, apontavam em um sentido internacionalista que se chocava com a política de “coexistência pacífica” impulsionada pelo Kremlin. Aqui não podemos fazer um balanço amplo dessas tentativas, ambas fracassadas. Somente assinalamos que, no que diz respeito à América latina, as boas intenções de Guevara de levar adiante uma luta revolucionaria continental que resgatasse Cuba do isolamento e infringisse uma derrota maiúscula ao imperialismo, se concretizaram em uma estratégia totalmente equivocada: a do foco guerrilheiro. É muito significativo que Guevara, a de fim de estender a revolução pelo resto do continente, jamais tivesse em conta a classe trabalhadora, apesar de que em países como Bolívia, Chile, Argentina ou Peru, protagonizavam lutas colossais, com revoluções como a de 1952.
Em política exterior, o governo cubano se alinhará incondicionalmente com o Kremlin. Em 1968, este curso chega ao topo (Gott, cit., pp. 235ss.): o governo cubano aplaude a invasão do Kremlin à Checoslováquia para esmagar a Primavera de Praga. Em 1979, apóia a intervenção da URSS no Afeganistão, que marcará o princípio do fim do regime soviético. Em troca deste apoio incondicional, Moscou subvenciona a economia cubana e mantêm forças militares dissuasórias de uma intervenção dos EUA. Ao mesmo tempo integrada ao sistema soviético, Cuba “socialista” continua sendo, como desde o fim do século XVIII, um país com monocultura de açúcar.
Vinte anos depois da Primavera de Praga, a burocracia de Moscou estava em sua mais grave crise econômica, política e militar, que o Ocidente aproveita – com Reagan – para exercer pressão. No Kremlin, estavam abertas as correntes restauracionistas, primeiro dissimuladamente com Gorbatchov (URSS 1985-91) e logo abertamente com Yeltsin (Rússia 1990-99). Já em meados dos anos 80, as aspirações da maior parte da burocracia (que logo se “recicla” no novo regime burguês de Rússia) são: terminar com a Guerra Fria e buscar uma associação com EUA e o ocidente (Gott, cit., pp. 273ss). Nesse contexto, Cuba é um estorvo político e um esbanjamento econômico, e fica a abandonada à sua sorte. Abrir-se-á, assim, uma nova etapa que chega até nossos dias.
Isto preparou o marco das graves e decisivas derrotas dos anos 70. As massas trabalhadoras e, sobretudo, a numerosa vanguarda operária e estudantil foram majoritariamente enquadradas em duas estratégias igualmente desastrosas: a da “via pacífica ao socialismo”, promovida desde Moscou e impulsionada por partidos comunistas e socialistas, e a do guerrilherismo guevarista em suas diversas variantes. Elas foram as grandes organizadoras da sangrenta derrota sul-americana, que começaram a marcar o ponto de inflexão da ascensão revolucionária iniciada na década de 60. As correntes que, acertadamente, sustentaram a estratégia de fazer centro na mobilização revolucionária das massas operárias e populares foram minoritárias, como a corrente trotskista orientada por Nahuel Moreno, que criticará as concepções de Guevara e vaticinará que estão “semeando o caminho de derrotas” (N. Moreno, “Dois métodos frente à revolução Latino-americana. Comentários críticos aos trabalhos de Ernesto Che Guevara, ‘A guerra de guerrilhas’ e Guerra de guerrilhas: um método”, estratégia – segunda época – Buenos Aires 1964).
16 Se Mella caracterizava engenhosamente Machado como um “Mussolini tropical”, poderíamos dizer que o período que vai desde 1936 até meados dos anos 40, é uma espécie de “New deal tropical”, uma cópia ruim de cooptação e concessões, desenvolvida pelo presidente Roosevelt, para desarmar o combativo movimento operário americano daqueles anos.
17 O reparo que eleva Lázaro Peña, retrata a política de colaboração de classes com que o PSP orientava os sindicatos: “Nem poses demagogas, nem demandas exageradas, nem ação desordenada, nem atuação anárquica ou irresponsável cometeu em toda sua existência a CTC, que foi, ao contrário, fator de unidade, de ordem e do melhor desenvolvimento nas relações entre o Capital e o Trabalho” (citado em C. Bianchi Ross, “Assalto à CTC”, sublinhados nossos). Peña se queixava da integridade do estado burguês pelos valiosos serviços que lhe havia prestado!
18“A diligência (mujalista) dos sindicatos suprimiu à força todas as forças dissidentes que ameaçaram seu pacto (com Batista). A classe operária organizada sofreu assim uma dupla ditadura: a de Eusebio Mujal e a de Fulgencio Batista. Sem organizações autônomas, a classe trabalhadora foi atomizada. O principal resultado foi que os trabalhadores, que cada vez mais se voltavam contra Batista, o fizeram como cidadãos individuais mais que como membros de organizações coletivas da classe operária” (Farber, cit., p. 128, sublinhados nossos).
19 A corrente mandelista teve uma política seguidista às burocracias e em geral a todas as direções que encabeçaram revoluções ou fenômenos “impactantes” (como em seu momento a “Perestróica”, ou na América Latina o PT brasileiro). Mandel sustentava teoricamente seu seguidismo com duas teses:
- “Da Comuna de Paris até a vitória da Revolução Cubana, passando pelas vitórias das revoluções de Iugoslávia, China e Vietnã, temos visto as revoluções socialistas derrubar vitoriosamente o poder do capital sob a direção de grupos ou partidos que têm em comum três características: sua natureza objetivamente proletária, sua opção a favor da revolução – e pelo mesmo sua ruptura com estratégias e táticas contra-revolucionárias em momentos decisivos; suas insuficiências programáticas clamorosas, que conduzem em todo caso a deformações burocráticas graves, salvo no caso da Comuna, derrotada rapidamente… Este fenômeno está na metade do caminho entre o stalinismo e o marxismo revolucionário e é resultado da debilidade ainda pronunciada do fator subjetivo em escala mundial” (Ernest Mandel, “la défaite impérialiste au Vietnam”, sublinhados nossos).
- As burocracias eram um setor da classe operária, só que privilegiado. A demonstração “sociológica” desta teoria é que os burocratas são trabalhadores assalariados… ainda que melhor remunerados que os restantes: “A burocracia não possui os meios de produção, participa da distribuição da renda nacional exclusivamente em função da remuneração da sua força de trabalho. Isso inclui muitos privilégios, mas são sob a forma de remuneração, que não difere qualitativamente da remuneração sob um salário” (Ernest Mandel, Revolutionary Maexism Today, p. 142).
Em primeiro lugar, era falso que a burocracia obtivesse seus privilégios o e principalmente sob a forma de um salário. Além do mais este sofisma de Mandel implicaria que o presidente do diretório de uma corporação que recebe também um “salário”, pode ser igualado socialmente ao operário assalariado que sua mais-valia nas suas fábricas. Defendendo-se em uma questão formal – a forma salário, Mandel ilude o conteúdo social e de classe absolutamente distinto dos envelopes com o “salário” que recebem os operários, o burocrata “socialista” e o executivo de uma grande empresa.
Assim mesmo, o que recebe o burocrata (por dentro ou por fora do envelope) inclui não somente “a remuneração de sua força de trabalho”, senão também sua quota-parte na apropriação do valor excedente que produzem os trabalhadores de verdade. Ou seja, sua parte numa exploração que não é “orgânica” (como a do capitalismo), mas que abriu a porta para a restauração; é dizer, o regresso a uma exploração orgânica mais segura e estável, a capitalista. Por isso, contra o que acreditava e esperava Mandel, resultou que os burocratas da Iugoslávia, China e Vietnã não estavam na “metade do caminho entre o stalinismo e o marxismo revolucionário”, senão entre o estado burocrático e a volta ao capitalismo: marchavam para converter-se em burgueses. Por outro lado, como veremos mais adiante, a burocracia cubana, mais tardiamente, caminha no mesmo sentido… ainda que por enquanto não chegou, como pretende o “cubanólogo” da LIT-PSTU. Isto veremos mais adiante.
20 Exemplo típico de “frente policlassista” ou “frente popular” foi a UP (Unidade Popular) chilena, que governou com Salvador Allende de 1970 a 1973. O Movimento 26 de Julho não foi uma organização operária, mas ao mesmo tempo teve pouco a ver com esses tipos de coalizões.
21 O marxismo revolucionário do século XXI herdou o peso morto das explicações “objetivistas” das revoluções do pós-guerra, que botaram de cabeça para baixo a teoria da revolução permanente, fazendo o centro não nos sujeitos sociais e políticos, senão nos chamados “fatores objetivos”: os ataques do imperialismo, as crises econômicas, as tarefas colocadas pela revolução etc. Esse debate é rigorosamente atual, pois hoje lamentavelmente temos mais de um esperando que Chaves obrigados pelas circunstancias e as “pressões do imperialismo”faça como Fidel. Para analisar esse problema teórico de conjunto, recomendamos ver SoB 17/18. “Notas sobre a teoria da Revolução Permanente”, de Roberto Sáenz, especialmente “Critica à concepções das revoluções ‘socialistas objetivas’”.
22 No trotskismo do pós-guerra, as revisões “objetivistas” e/ou “substituístas” da teoria da Revolução Permanente se faziam para explicar como este tipo de sujeito político-social expropriava a burguesia. Houveram expressões muito variadas, como as de Mendel ou Moreno, mas dentro desses parâmetros. Mandel, sem dizer que estava colocando todo o revés, apresentava como “teoria da revolução permanente” uma mistura original de substituísmo e objetivismo. Achava que “a ditadura do proletariado foi estabelecida na Iugoslávia, China, Vietnã e Cuba por direções revolucionárias pragmáticas, que têm uma prática revolucionária, mas não a teoria e o programa adequados, nem para sua própria revolução nem para a revolução mundial” (E. Mandel, “In Defence of the Permanent Revolution”, p. 54). Claro que destas “direções revolucionárias pragmáticas” ou “centro-esquerda” nunca ficava claro seu caráter social. Já vimos anteriormente, segundo Mandel, como estas “direções pragmáticas” estavam na metade do caminho entre o stalinismo e o marxismo revolucionário. Estabelecia assim o fundamento teórico para a política de “seguidismo” a todas elas.
Moreno, sem fazer tantos malabarismos, assume francamente que esta revisando a teoria da revolução permanente. Mas a diferença de Mandel trata de sustentar uma posição independente das direções burocráticas. A solução teórica que achou para esta questão foi fazer passar os sujeitos a um plano secundário. A revolução se moveria não pela luta entre sujeitos históricos, sociais e políticos, como sustentava Trotsky, senão impulsionadas por uma “combinação objetiva de tarefas”: por exemplo, no caso de Cuba, na luta pela independência nacional frustrada pela intervenção ianque de 1898 exigia expropriar a burguesia, que era extremamente submissa a Washington.
Essas “combinações objetivas de tarefas” estabeleceriam uma espécie de lei da gravidade dos processos revolucionários. Moreno exemplifica isso com um carro: “Para que o carro se mova tem duas maneiras: uma é que alguém acione a marcha; outra é colocá-lo em uma descida para que ande só. Neste último caso, o movimento é objetivo, ninguém o para, é um processo objetivo” (N. Moreno, “Crítica as Teses da Revolução Permanente de Trotsky” p.18). Não obstante a história da Revolução Cubana desmente esta espécie de “lei da gravidade” das revoluções. O carro da revolução cubana teve um condutor, Fidel Castro e o movimento do exército nacional populista. Os giros e rumos desse carro, seja na descida ou em subida, foram executados por esse sujeito político social que estava no volante.
23 Está documentado que já em 1958, se tentaram contatos com o bloco soviético, via empresas dessa origem na Costa Rica, com o objetivo imediato: conseguir armas que eram negadas pelos EEUU. Logo após o triunfo da revolução, os contatos com Moscou gestaram-se preventivamente quase de imediato, muito antes do início dos atritos com os EEUU pela Lei da Reforma Agrária e outras medidas. Ao mesmo tempo em que tudo isso se processava em segredo, Castro, publicamente e inclusive numa viagem aos EEUU, iludia com ambigüidade e assumia compromissos que começavam a exigir-lhe de Washington esclarecimentos de dúvidas e temores que despertava no imperialismo sua política. Tomando estes e outros fatos, uma legião de charlatães, ao estilo de Montaner, tem elucubrado a respeito da “conspiração comunista” dos Castro e o Che Guevara, que explicaria tudo o que sucedia. Na realidade, o Kremlin estava completamente desinteressado do que acontecia em Cuba, considerada no marco dos acordos de Yalta-Potsdam, parte da esfera de influência dos EEUU. Tanto perante os EEUU como a União Soviética, foi Fidel Castro quem levou a iniciativa e não ao contrário, inicialmente dentro de uma política pragmática para aproveitar o enfrentamento entre os blocos da Guerra Fria. Ver Got, cit.,pp.178-183 e Farber, cit.,pp.143ss.
24 Um exemplo dessa dialética entre o subjetivo e o objetivo foi a expropriação final da burguesia. Ao começar os problemas do governo com os EEUU e perante medidas que ainda não eram moderadas (lei de rebaixa de aluguéis, reforma agrária, etc.), a burguesia comete o erro de ir embora em massa para Miami. Muito antes que fossem expropriados, os burgueses saem de “férias”, seguros de que EEUU poriam a “casa em ordem” em semanas ou meses. O “cipayismo” ou “malinchismo” superlativo da burguesia cubana, na que seguia vivo o anexionismo, foi uma mala pesada. A decisão de ausentar-se é contestada com a intervenção das suas empresas e granjas e logo com a expropriação (J. Murray, A Segunda revolução em Cuba, pp. 48ss.). Seus filhos e netos ainda seguem esperando voltar… e recuperar as propriedades.
25 Esta localização (relativamente) “por cima” das classes pode ilustrar-se também com os episódios (muito menos conhecidos) de choques com setores de trabalhadores durante o mesmo processo revolucionário. Assim, em 21 de maio de 1959 Castro enfrentou duramente a camponeses e trabalhadores rurais que tinham iniciado uma divisão de terras. Seria ele desde cima, quem disporia isso através da Lei de Reforma Agrária, não os camponeses nem os operários rurais! ( Murray, cit., p.62). A mesma coisa sucedeu com greves operárias condenadas inclusive antes de serem expropriadas as empresas privadas. Em relação aos sindicatos, tempos depois de serem varridos pelos mesmos trabalhadores os burocratas mujalistas que tinham servido na ditadura, Castro iniciou desde cima uma limpeza de dirigentes – grande parte deles provenientes do 26 de Julho, que não eram incondicionais e os substituiu principalmente com burocratas do PSP, de obediência garantida (ver Farber, cit., pp 122-123, 125-126 e 163 e Murray, cit., pp.94ss.).
26“Tudo se reduz a um denominador comum em qualquer uma das formas que se analise: o aumento da produtividade no trabalho, base fundamental da construção do socialismo” resumia Guevara (cit., p.64).
27 Tanto Guevara como seus contraditores mais afetos ao sistema de Moscou coincidiam em algo fundamental: que não era a classe trabalhadora a que decidia, organizada numa democracia operária e socialista. Ambas as partes sustentavam a mesma concepção verticalista, onde, neste caso, na cúspide estava o “Comandante Em Chefe” ou “Líder Máximo”, o qual “ordenava”. Em outros textos Che sintetizava assim este mecanismo político (que resultou ser de consequências fatais para os interesses dos trabalhadores na produção e elevação da produtividade.): “A massa realiza com entusiasmo e disciplina sem par as tarefas que o governo fixa, sejam de índole econômica, cultural, de defesa, esportiva, etc. A iniciativa parte de Fidel do alto mando da revolução e é explicada ao povo, que a toma somo sua…” Não entanto, o Estado se equivoca às vezes. Quando um desses equívocos acontece, nota-se uma diminuição do entusiasmo coletivo por efeitos de uma diminuição quantitativa de cada um dos elementos que a formam, e o trabalho se paralisa até ficar reduzido a magnitudes insignificantes; é o instante de retificar… “È evidente que o mecanismo não basta para assegurar uma sucessão de medidas sensatas e que falta uma conexão mais estruturada com as massas. Temos que melhorá-las durante o curso dos próximos anos, mas no caso das iniciativas surgidas de extratos superiores do governo, utilizamos por enquanto o quase intuitivo de auscultar as reações gerais perante os problemas colocados… Mestre nisso é Fidel…” (Che Guevara, “o socialismo e o homem em Cuba”, sublinhado nosso).
Na busca do “mecanismo” ainda desconhecido” de uma “conexão mais estruturada com as massas” ao Che nem lhe ocorre considerar a opção da democracia operária. Isso estava por fora do seu horizonte de ideias. Tem um método intuitivo de auscultar as reações gerais (no qual Fidel era “mestre”), mas não se concebe o método político e orgânico de dar as massas trabalhadoras a palavra para que livre e abertamente discutam e decidam democraticamente a respeito “das tarefas”…o que implicaria que, corretas ou equivocadas, as decisões seriam assumidas por elas realmente como suas”.
Dito de outro modo: se, como afirma o Che, é necessário intuir a opinião dos trabalhadores, é porque eles estão mudos dentro do regime político verticalista com o caudilho comandante no vértice da pirâmide. Então a solução não é moral senão política: um regime de democracia operária, em que existam organismos (como os conselhos operários do início da Revolução de Outubro), onde os trabalhadores falem e decidam.
A concepção de Guevara não era a do marxismo clássico, que se expressou na democracia socialista da Comuna de 1871 ou dos soviets de 1917, ou seja, a autodeterminação da classe operária.
Ou nas palavras de Lênin, “o estado democrático dos operários armados”. Também estava muito longe do marxismo clássico sua contraposição entre estímulos “materiais” e “morais”, que na verdade é muito mais próxima ao voluntarismo maoísta.
Por estes e outros motivos, achamos incorretas as tentativas daqueles que tentam emparelhar diretamente ao Che o marxismo clássico (M. Löwy, O pensamento de Che Guevara, pp. 7ss.) e especificamente com Trotsky (M Löwy, “Nem decalque nem cópia: Che Guevara na busca de um novo socialismo”, pp. 4-5 e Hart, Apontamentos revolucionários, p. 231). No seu livro, Celia Hart chega a afirmar que “quanto ao Che, ele seguiu o pensamento de Trotsky (ou o melhor do pensamento de Trotsky)”. Löwy, em outro texto, chega ao extremo de sustentar que Guevara “esteve consideravelmente próximo a ideia de planificação socialista democrática” (M Löwy, “After a long wait…’Critical Notes’ from Che”).
Na realidade, pelo respeito que merece um lutador revolucionário de heroísmo e honestidade irrepreensível como Guevara, deveríamos abstermo-nos de atribuir-lhe ideias que não teve. Além do que, isso não contribui a imprescindível tarefa de clarificar o balance das revoluções do século XX com vistas às lutas revolucionarias deste novo século. Em relação a isso, um tema sobre o qual também tem confusão é a ruptura final de Che com a burocracia do Kremlin em fevereiro de 1965, com seu famoso “Discurso de Argel” (Farber, “The Resurrection of Che Guevara”). Guevara intui em seus últimos anos que os burocratas de Moscou marcham para a restauração capitalista (Martínez, “O Che vaticinou a derrubada do chamado ‘socialismo real”’); uma percepção mais aguda que a de alguns “trotskistas” como Mandel. Mas o enfoque de Che a respeito disso, não era o de Trotsky, senão mais próximo ao de Mao (que equivocadamente, já considerava capitalista a URSS). Guevara não entendeu o stalinismo; pensava que o aburguesamento da burocracia era a última conseqüência da… NRP de Lênin (M. Löwy, “After…” cit.).
28“Mas o proletariado se move para a consciência revolucionaria não passando por graus na escola, senão passando através da luta de classes, que aborrece as interrupções” (L.Trotsky, The Struggle Against Fascism in Germany, pp. 193ss.). Nesse caso, tinha se produzido uma decisiva “interrupção”: a revolução não tinha chegado até o “grau” de que a classe operária tivesse realmente o poder, de que fosse – não no papel e nos discursos, senão de fato – a classe realmente dominante.
29“A violação da lei tem se convertido em parte da vida diária para poder sobreviver” (Farber, “Uma visita…”).
30 A atomização da classe trabalhadora e dos setores populares se agrava por outro fato fundamental que já assinalamos: nos estados burocráticos, a burocracia não somente administra verticalmente o aparelho do Estado, senão também todas as organizações sociais: operárias, estudantis, femininas, culturais, etc. Então o proletariado carece de organismos independentes e democráticos que lhe permitam contrapor isso. Ou seja, que lhe permitam atuar como classe e não individualmente (por exemplo, perante a escassez, a corrupção generalizada, etc.). Isso seria muito mais eficaz que as tardias e fracassadas tentativas de Fidel de conter, com essas iniciativas “guerrilheiras” desde cima, os “muitos roubos, muitos desvios e muitas fontes de abastecimento de dinheiro dos novos ricos”, dos quais se lamenta na citada “Biografia a duas vozes”.
31 Martínez Heredia é um dos intelectuais cubanos mais respeitados. Diretor e fundador da revista Pensamento Crítico em 1967 até sua clausura em 1971, nos anos de stalinismo brejneviano do regime, se identifica totalmente com a Revolução de 1959 e especialmente com o pensamento de Che Guevara. A caída vergonhosa do “socialismo real” na ex-URSS, que tinha servido de modelo ao regime cubano até meados dos 80, reivindicou sua figura.
32 Segundo um informe de agosto de 2008 da CEPAL, “em 2007 o PIB cubano cresceu um 7,3% e dado o nulo crescimento demográfico, o PIB por habitante se expandiu na mesma proporção. A inflação foi de 2,8%, metade da observada no ano anterior (5,7%). A conta corrente da balança de pagos mostrou um superávit equivalente ao 0,8% do PIB. (…)” De acordo com as projeções do governo, se prevê que em 2008 a taxa de crescimento do PIB ficara em torno de 8%”(CEPRID, “Informe da CEPAL sobre a economia cubana”). Não obstante, os ingresso reais de grande parte da população não aumentaram um 7,3% em 2007 mais um 8% em 2008. A torta se reparte em forma cada vez mais desigual.
33“O exército é com e PCC, o outro pilar institucional do país. Raúl Castro é ministro das FAR (Forças Armadas Revolucionarias) (…) Sua coesão e disciplina fazem dela uma das instituições mais sólidas do regime. O exército, com 50 mil homens, representa uma potência econômica maior que a investida no turismo, agricultura, indústria, telecomunicações e controla dois terços da economia. Certos observadores não duvidam em afirmar que as FAR são ‘os pioneiros do capitalismo cubano’. Foi no exército onde se experimentou (sob o impulso de Raúl Castro, apoiado logo por Carlos Lage), no final dos anos 80 e 90, um processo chamado de ‘aperfeiçoamento das empresas do Estado’, com o objetivo de aumentar a produtividade no trabalho. Esta modernização produtiva, que implicava reduzir efetivos excessivos, foi aplicada nas empresas estatais controladas pela FAR. Graças a disciplina inerente a instituição, seu resultados (…) Na cabeça das grandes empresas figuram antigos comandantes do Exército Rebelde, assim como jovens oficiais que têm adquirido uma formação econômica nas escolas de gestão européias (…) o trabalho do exército é ganhar dinheiro, como afirma Frank Mora, professor no National War College de Washington” (Habel, cit.).
34 Não obstante, por fora dos marcos “oficiais” tem começado a circular muitos textos, como o de “Cuba necessita um socialismo participativo e democrático. Propostas programáticas”, firmada por “Pedro Campos e vários companheiros” (www.docialismo-o-barbarie.org, edição de 31/8/08).
35 “Os recentes Jogos Olímpicos têm sido uma grande vitrine para o novo capitalismo chinês em ascenso. A China atual é resultado de um longo processo de restauração capitalista iniciado faz três décadas. As reformas começaram em 1978 ampliaram e aprofundaram seu alcance progressivamente, debilitando os mecanismos da economia planificada e receberam um empurrão decisivo a partir de 1992. (…) Trinta anos de reformas configuraram um capitalismo selvagem sem paliativos. (…) A China está atravessada por grandes desequilíbrios sociais e regionais. As reformas provocaram concentração de renda, polarização social e um aumento das desigualdades. O coeficiente de Gini (que mede a desigualdade) passou de 0,30 em 1980 para 0,48 (…) Cifrada em umas 150 milhões de pessoas, a nova classe trabalhadora ocupa os degraus mais baixos do mercado de trabalho (…) As condições de trabalho e de vida constituem a cara mais amarga do novo capitalismo chinês. Salários baixos, jornadas intermináveis, insalubridade e violação das leis trabalhistas por parte de muitas empresas e dos terceirizados fazem parte da realidade cotidiana” (J. Antentas e E. Vivas, “O novo capitalismo chinês”).
36“Um estudo do Conselho de Estado, a Academia de Ciências Sociais e o PCCh provou recentemente que dos 3.229 chineses com uma fortuna maior aos 10 milhões de dólares, 2932 são ou eram funcionários de alta patente do Partido Comunista” (L. Esnal, “As duas caras da nova China”).
37 Temos que advertir que as duas primeiras forças e programas não são absolutamente contraditórios. Hoje é assim, pelo desatino de Washington (e Miami) de seguir apostando no “tudo ou nada”. Porém a grave crise do imperialismo ianque em todos os terrenos poderia abrir as portas para câmbios que se expressem na próxima presidência de Barack Obama. Não obstante, por enquanto, não há sinais claros nesse sentido. Se assim fosse, abrir-se-ia um espaço para soluções de compromisso que abranjam a todos os interesses e variantes restauracionistas.