Tramita na Câmara dos Deputados o projeto do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), o mesmo que foi denunciado por agressão à esposa. É a criação do chamado de “Clube empresa”. O projeto, se aprovado, pretende estimular a migração de clubes para o modelo empresarial nas opções já existentes, como companhia limitada e sociedade anônima, oferecendo uma série de benefícios aos clubes. Vamos a eles:
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Recuperação judicial – permite que todos os bloqueios e penhoras sobre um clube sejam suspensos por seis meses e que, dessa forma, haja um calote de grande parte da dívida, desde que os credores (fornecedores e ex-funcionários) aceitem o plano proposto pela empresa. Isso costuma acontecer, com acordos envolvendo o abatimento dos valores devidos variando de 50% até mais de 90% do montante da dívida;
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Novo refinanciamento de dívidas fiscais – as dívidas fiscais não poderão ser incluídas em processos de recuperação judicial. O projeto engloba um percentual de reduções, com abatimento de 50% dos juros sobre as dívidas. Os clubes que aderirem a este refinanciamento por meio de suas empresas precisariam pagar antecipadamente 15% da dívida consolidada por meio do refinanciamento. As agremiações que optaram pelo Profut (Programa de Modernização da Gestão de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, de 2015, quando o governo Dilma perdoou dívidas milionárias dos clubes) não precisariam fazer um pagamento deste tipo após a entrada. Os clubes teriam o prazo de 20 anos para quitar os impostos não pagos;
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Fundo Garantidor para clubes quebrados – o projeto cria um fundo abastecido por todos os clubes do país, com um percentual sobre o faturamento, cujo dinheiro poderá ser usado para resgatar clubes em “insolvência irreversível”;
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Fim dos direitos trabalhistas para jogadores – o projeto permite que um jogador com salários superiores a R$ 10 mil mensais (cerca de 2,5% do total de atletas registrados na CBF) possa assinar um contrato com o clube em questão sem que tenha direitos trabalhistas garantidos por ele, só recebendo direito de imagem. Jogadores abaixo de R$ 10 mil mensais continuariam a ter direitos trabalhistas obrigatórios. O projeto de Pedro Paulo também elimina a necessidade de diploma para o futebol para determinadas funções da comissão técnica, aprofundando nesta área a precarização imposta pela Reforma Trabalhista de 2017;
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Equiparação da tributação entre associações e empresas – para estimular a migração para estrutura empresarial, o projeto pretende aplicar todos esses impostos sobre associações sem fins lucrativos com faturamento anual de R$ 5 milhões anuais;
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Duplicação do mecanismo de solidariedade – no projeto, os clubes passariam a destinar até 10% de transferências nacionais para os respectivos clubes que formaram e revelaram atletas;
O projeto no Senado: a criação da Sociedade Anônima Esportiva
Paralelamente, ao projeto do deputado Pedro Paulo na Câmara dos Deputados, existe também o Projeto de Lei do Senado n. 68/2017 que busca instituir a Lei Geral do Desporto, que incluí entre os seus artigos a criação da Sociedade Anônima Esportiva (SAE). Entre os articuladores dessa discussão no Senado, está o ex-jogador Romário (PODEMOS/RJ) e a ex-atleta do vôlei, Leila (PSB-DF). Diferente do projeto de Pedro Paulo que cria benefícios específicos aos clubes que se tornarem empresas, como perdão de dívidas ou a entrada facilitada em uma recuperação judicial, a SAE apenas põe regras estruturais para que associações façam a migração para ela:
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Direitos de ações classe A – o projeto prevê, por exemplo, a possibilidade de um acionista ter poder de veto em determinadas situações desde que mantenha pelo menos 10% de ações “classe A”, como mudanças de escudos, símbolos, cores, até às medidas drásticas como pedido de recuperação judicial, mesmo que outros acionistas tenham 90% das ações desta classe e sejam contrários;
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Veto a acionista com mais de uma SAE – projeto prevê a proibição da participação de um mesmo acionista sobre o capital social de duas SAEs;
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Administração profissional – a SAE deve ser administrada por um Conselho de Administração com dedicação exclusiva dos administradores à gestão da SAE, ou seja, profissionais para este fim;
Governo Bolsonaro: “choque de capitalismo”
Não para aí: além da Câmara de Deputados e do Senado, o governo Bolsonaro também prepara o seu projeto, através de uma equipe liderada pelo empresário Guilherme Afif Domingos, assessor especial de Paulo Guedes. Segundo Afif, é o “Choque de bola” (ou de capitalismo). De acordo com o candidato derrotado nas eleições presidenciais de 1989, “o futebol é um grande mercado, há bilhões de reais que estamos deixando escapar”.
A ideia do governo é criar uma estrutura societária alternativa para clubes de futebol, cujo nome provisório é Sociedade Anônima do Futebol (SAF), que resguarde particularidades deste mercado que não estão presentes em outras regulamentações. As características propostas com a criação da SAE no Senado estão também na SAF, mas esta última acrescenta uma proposta: um prazo de transição para pagamento de impostos. Atualmente as associações sem fins lucrativos possuem isenções sobre uma série de impostos que empresas estão obrigadas a pagar. Para se adequar a SAF, os clubes teriam um prazo de dez anos para o pagamento total dos impostos, em que o percentual subiria gradualmente, ano após ano, até chegar ao máximo.
As três iniciativas (Câmara, Senado e Executivo) se complementam na concepção de transformar os atuais clubes em empresas viáveis e saneadas, com perdões milionários de dívidas fiscais e precarização nas relações trabalhistas. E a partir disso, como se está loteando o país, os clubes empresas poderiam ser vendidos para alguma corporação internacional, como o Paris Saint-Germain, ou para milionários, como o Mancheter United e o Chelsea da Inglaterra.
O fim do futebol como manifestação cultural popular: um balancete contra outro balancete
O futebol – o principal traço cultural do brasileiro, como escreveu o comunista, jornalista e treinador João Saldanha – que começou aristocrático e se popularizou com o surgimento dos clubes operários e a penetração de pobres, negros, mestiços e índios nos seus times e torcidas no século XX, perderia de vez esse traço plebeu. O futebol negócio foi um processo construído principalmente ao longo das últimas cinco décadas, com as propagandas de fornecedores e empresas nas camisas dos clubes, o televisionamento direto dos jogos, a criação de “arenas” elitistas em substituição aos antigos estádios populares, a proliferação das loterias de jogos, etc.
E, voltando novamente a João Saldanha, com o clube empresa seríamos obrigados a torcer por um balancete contra outro balancete. Definitivamente, o fim de uma paixão genuinamente popular.