A imposição do Estado de Israel sobre as históricas terras palestinas e seu povo foi produto da vitória de uma concepção cuidadosamente construída pelos sionistas (considerados, por muitos, uma ruptura do judaísmo), a qual deu, inclusive, um novo sentido à palavra “judeu”. Antes essa palavra designava apenas “seguidores da religião Judaica” (monoteísta, descendente de Abraão e que tem o livro Torá como orientação espiritual e de costumes). Depois passou a designar um povo, o povo Judeu.
Foi uma mudança com muitas consequências, por razões políticas e ideológicas, pois todo povo (no caso “o povo judeu”) precisa de um território. E é aí onde entram a Palestina e os palestinos, pois para esse novo Estado existir era necessário expulsar quem historicamente habitava a região.
Neste breve texto buscamos demonstrar que a atual política de Israel – em estabelecer em lei critérios racistas para ser reconhecido como judeu e ao direito aos direitos da cidadania – está muito relacionada a concepção de Judeu como identidade nacional (ser “um povo”), muito difundida durante o século XX e que ganhou força. Mas, esse debate é bem amplo e complexo.
Para melhor compreensão, nos referimos ao sionismo de maneira geral como uma força política e religiosa reacionária e fundamentalista, mas é justo dizer que já existiu com alguma força um “sionismo de esquerda”, mas que também defendiam a criação de um Estado nacional como solução “da questão judaica”.
No final do século XIX e início do século XX, organizações e forças políticas também foram defensoras da ideia de os Judeus serem um povo, sem, no entanto, defender a criação de um Estado nacional como solução.
Foi o caso do Bund (em iídiche), União Geral dos Trabalhadores Judeus, partido influente entre os operários judeus na Rússia e no Leste europeu, que afirmava “o sionismo e seus ideais políticos e culturais (ancorados no messianismo judaico e na língua e literatura hebraicas) eram alheios às massas judias, e o projeto de um Estado soberano na Terra de Israel, uma ilusão burguesa” (https://bityli.com/hMmUM).
O debate sobre a existência de um Estado de Israel e a não existência de um Estado Palestino tem várias questões envolvidas. E os sionistas e as forças de direita, no mundo, procuram vincular ao antissemitismo esse debate e qualquer crítica feita a Israel.
No entanto, pelas consequências na luta de classes, precisamos aprofundar esse debate junto à classe trabalhadora, pois o povo palestino está sendo massacrado para a imposição de uma política colonialista de dominação de um Estado único, o de Israel.
Judeu: Povo ou seguidor da religião?
Para a concepção sionista, que se tornou lei em Israel, uma nação é definida por sua identidade étnica, ou seja, a língua, costumes, biótipo, etc. definem quem pertence àquela “raça” e, assim, pode ser considerado cidadão pleno no país e gozar de todos os direitos civis.
No caso de Israel essa concepção tem muitas contradições, principalmente pelo fato de muitos judeus de descendência árabe e africana terem chegado no território quando a política sionista era de “purificar” a nação judaica, o que levou a constantes movimentos discriminatórios e racistas contra quem não vinha da Europa.
Para se chegar a isso também houve a construção do mito do exílio judeu forçado, parte de falsificações históricas (contra as quais vários historiadores israelenses resistem) e ainda a criação de, nas palavras de Shlomo Sand, uma “nova ciência biológica” visando “comprovar” que os atuais judeus são descendentes diretos daqueles que viveram na região de Jerusalém e Judeia há milhares de anos. A hereditariedade e consanguinidade dos atuais judeus em relação aos antigos habitantes constituem, em grande medida, o argumento para reivindicar o direito ao território palestino.
No, contestado, mito (quando não há comprovação cientifica de algum fato) construído pelos sionistas, os judeus foram forçados a se exilarem e abandonarem suas terras por imposição dos conquistadores. Como evidência, apontam a existência de judeus em várias partes do mundo como na Europa e principalmente na região do Mediterrâneo sendo que todos seriam descendentes diretos dos primeiros judeus, obrigados a se retirarem de suas terras ancestrais. Nesse sentido entra o mito da “ciência biológica”, segundo a qual, as características biológicas são comuns entre judeus do Brasil, da Rússia e dos Estados Unidos, por exemplo.
É assim que a narrativa mitológica junto com a “nova ciência biológica” procura justificar a tese do direito ao retorno de judeus a “terra prometida”, a terra de seus antepassados.
Para ser fiel a verdade é importante destacar que a historiografia sionista, além das deportações (principal elemento), também apresenta outros elementos para explicar a presença de judeus em outras partes do mundo, mas como fatos secundários tais como as emigrações voluntárias e a pobreza. E, de forma mais secundária ainda, a conversão religiosa.
Já para os historiadores críticos ao sionismo, a conversão religiosa ao judaísmo é o principal fator do registro de presença massiva de judeus em outras regiões. A conversão foi, inclusive, uma política de “Estado” encampada fortemente por alguns dirigentes como na dinastia dos Asmoneus, a partir do ano 165 a.C., muita ativa para a expansão religiosa do judaísmo.
“Mito”, na História, significa algo que não pode haver comprovação científica como é a tese do exílio forçado dos judeus, bem aceita nos círculos sionistas. No entanto, sem credibilidade entre historiadores não sionistas, principalmente por não existirem provas materiais desses episódios nem mesmo entre as fontes históricas romanas, que produziram farta documentação do período de domínio na região.
Os registros históricos apontam algumas expulsões, mas não do povo em massa. No livro A invenção do povo judeu, o autor Shlomo Sand cita dois momentos: O primeiro quando os babilônios, após a conquista do Reino de Judá no século VI a.C., expulsaram a elite religiosa sem estender essa medida para toda a população, que permaneceu no território. O segundo, foram as revoltas contra o domínio romano (dos Zelotas em 70 d.C. e de Bar Kochba em 135 a.C.) quando “em nenhum lugar da extensa documentação romana há menção de qualquer deportação da população de Judeia”.
Outro fato histórico que comprova a expansão do judaísmo (e da quantidade de pessoas que assim se reivindicava) pela adesão à fé foi a conversão do reino Himyar, no ano 378, ao judaísmo e que lhe transformou em uma dinastia africana que governou até o começo do século VI d.C.
Paralelamente a essa expansão, exatamente na região onde nasceu, o judaísmo foi perdendo força e em seu lugar o islamismo foi se consolidando aos poucos, provavelmente a partir da conquista muçulmana na região, no século VII d.C., ainda que esses conquistadores não proibissem outros credos, desde que fossem monoteístas.
Esses fatos apontados são para mostrar que, historicamente, o judeu é praticante de uma fé religiosa identificada como judaísmo. E que toda a construção ideológica do sionismo, absorvida por Israel, serve ao propósito de massacrar e impor sim um exílio ao povo Palestino, prática, aliás, repudiada por muitos judeus e pessoas de origem judia.
É como afirma Shlomo Sand, em uma entrevista de 2011 ao Jornal Correio do povo, refutando a ideia de Judeu ser um povo: “Sou de origem judaica. Mas ser judeu não é pertencer a uma raça. Isso não existe. Quem pensa assim é racista. Um judeu brasileiro é antes de tudo um brasileiro de religião judaica. Quase nada há em comum entre um judeu polonês e um judeu brasileiro. Não existe uma cultura laica judia” ( https://bit.ly/3az9Jav).
Para entendermos como os sionistas, defensores do Estado de Israel com o fim do Estado Palestino têm consciência de serem racistas e da falácia dessas teorias sobre as quais se embasaram durante todo o século XX, esse mesmo autor denuncia que “Na Universidade de Tel Aviv há laboratórios que pesquisam desesperadamente o DNA judeu para provar que os judeus são um povo-raça”.
Um outro argumento – direcionado aos que acusam de antissemitas os opositores do sionismo (não ao judaísmo), por mais paradoxal que possa parecer – é que quem defende a ideia de os judeus serem um povo ou raça se aproxima da mesma ideia de Hitler, que decidiu que os judeus alemães eram um povo e, assim, não poderiam ter os mesmos direitos dos alemães. Ou seja, nesse sentido, sionistas e alemães nazistas se identificam.
Um Estado ilegítimo, racista e segregacionista como o apartheid sul-africano
O debate sobre o significado do “ser judeu” tem consequências políticas práticas. E, nos últimos anos, principalmente, os setores fundamentalistas acumularam forças no interior da sociedade israelense e conseguiram impor essa concepção racista como lei máxima do país.
A Lei “Estado-Nação”, aprovada em 2018 (mesmo nível da Constituição Federal no Brasil) estabelece que “A terra de Israel é a pátria histórica do povo judeu, na qual o Estado de Israel foi estabelecido” (1A) e logo em seguida que “O Estado de Israel é o lar nacional do povo judeu, no qual cumpre seu direito natural, cultural, religioso e histórico à autodeterminação” (1B)
Por essa Lei tem-se:
– A denominação Estado Judeu (exclusivo e baseado no que, para eles, se trata de uma raça) substitui a “Estado israelense”, restringindo ainda mais o gozo da cidadania e de direitos aos não-judeus.
Os símbolos, o calendário, os costumes culturais e religiosos, a língua, etc. são todos da tradição judaica. Isso significa que as manifestações culturais, religiosas e históricas dos árabes serão ainda mais reprimidas e perseguidas, ou seja, aproximadamente 25% da população de Israel (entre árabes, drusos, etc.) estão excluídas por essa definição de Estado;
– A Lei também estabelece que “o idioma do Estado é hebraico”. A língua é considerada um elemento importante do nacionalismo e por isso fizeram questão de tornar o hebraico a única língua oficial do Estado israelense. Mas, há um detalhe importante e contrário ao argumento sionista: o hebraico falado atualmente em Israel não é a antiga língua hebraica semita, hoje considerada morta como é o latim.
O chamado “hebraico moderno” é um idioma eslavo, construído no século XIX, com alguns elementos fonéticos do ídiche oriental e elementos léxicos (vocabulário de um idioma) do hebraico bíblico. Também recebeu influências das línguas árabe, russa, inglesa e alemã. Tem um vocabulário reduzido e regras gramaticais simples. Como é relativamente simples para ser aprendido, isso facilitou e facilita os planos dos sionistas em propagá-lo como a única língua oficial do país.
– Somente os judeus são reconhecidos como cidadãos plenos (em seguida veremos as condições para esse reconhecimento). Nesse sentido, dar significado de povo à palavra Judeu permite excluir dos direitos políticos plenos, todos os não considerados judeus. A população não-judia não tem direito à autodeterminação, ou seja, o Estado não lhes pertence. Até mesmo em relação a criação de Israel, isso é um retrocesso, pois a Declaração de Independência em 1948 (questionada mundialmente) estabelecia que o Estado de Israel era para todos os cidadãos.
– A população de origem árabe, na prática, não é reconhecida como parte do Estado, portanto, é excluída até dos direitos de cidadania. A Lei também rebaixa a língua árabe de oficial para “especial” e não reconhece seus costumes, sua cultura, seus símbolos.
– Mantém o confisco das terras palestinas (pátria histórica do povo judeu), inclusive a “Jerusalém completa e unida”, contra o entendimento da maioria dos países, passa a ser a capital de Israel. Nessa Lei também está embutida a ideia de que o “povo judeu” é superior aos demais que ocuparam essa região como caldeus, persas, helênicos, romanos e árabes.
– Essa Lei, ao excluir os não-judeus dos direitos civis, é racista e representa a consolidação do apartheid estatal sionista, um processo iniciado ainda na criação do Estado israelense e que tem o racismo como política de Estado. As Leis do retorno e da cidadania (logo no início da criação do Estado) excluíram os não-judeus; as instituições do Estado foram controladas só por judeus; na fundação do Estado, as terras foram entregues ao Fundo Nacional Judaico e era proibido vendê-las para não-judeus e a proibição de novos bairros ou de novas cidades palestinas são alguns exemplos de como o racismo sempre foi muito forte na sociedade israelense.
A aprovação dessa Lei foi uma vitória para os setores fundamentalistas e sionistas que sempre defenderam um Estado exclusivamente judeu e transformaram em Lei.
O que temos hoje é um Estado que segrega árabes que residem em Israel e segrega palestinos em seus próprios territórios ocupados pelas forças militares israelenses.
Entendemos, assim, que Israel assume as mesmas características do apartheid sul-africano e possui um regime com práticas discriminatórias e de segregação de uma etnia para outra dominar, aliás, práticas consideradas criminosas pela própria ONU. Se na África do Sul os negros eram segregados pelo Estado dominado pelos brancos, em Israel e nos territórios palestinos ocupados são os não-judeus os segregados.
As bases racistas de formação do Estado de Israel atingiram até mesmo os judeus que, chegaram a Israel, vindos de regiões africanas e da Ásia, pois eram considerados primitivos diante de uma sociedade que os dirigentes tinham como origem a Europa “civilizada”. Mesmo constituindo um percentual importante da sociedade israelense, por essa condição “não civilizada”, foram empurrados para posições mais rebaixadas, pois se encontravam em condições de “inferioridade objetiva”.
Importante destacar também que essas medidas impostas pelos sionistas não representaram a totalidade do judaísmo, inclusive, há muitos que se consideram judeus, se opõem a essas medidas e a própria existência do Estado israelense. É o caso da seita ultraortodoxa Naturei Karta como declarou o rabino Meir Hirsch (liderança da seita) “A ideia sionista é contrária à religião judia, e nós como judeus autênticos nos opomos a ela” (globo.com) e em um outro momento sobre o Holocausto “exemplo de uso de sangue judeu por parte do sionismo que esteve em todo momento de acordo com os nazistas para que algo assim acontecesse e desta maneira justificar a criação do seu Estado”. (Tradução livre de https://bityli.com/yHFWo)
Cidadania de Segunda Classe
A legislação israelense é bastante aberta para os judeus conseguirem a cidadania e gozar dos vários direitos civis. E os critérios, segundo a concepção dos fundadores do Estado israelense, são de pertencimento à identidade étnico-racial judia. Um indivíduo, mesmo nascendo em território israelense, só é considerado judeu se a mãe for judia. Ao não se enquadrar nesse critério, ainda com o pai judeu, não há a concessão de cidadania. Como também consideram Israel “o lar dos judeus”, outro critério é se enquadrar nas regras da Lei do Retorno: “todo judeu tem o direito de imigrar para Israel”. Isso significa que “essencialmente, todos os judeus são cidadãos israelenses por direito” e, se assim desejarem, poderão voltar para Israel, direito estendido aos filhos e netos, bem como para os respectivos cônjuges e filhos menores. Mas, recentemente, o governo tem colocado limitações a essa forma de reconhecimento.
Já para os árabes-palestinos as dificuldades sempre foram muito grandes. Desde a invasão para construção de Israel foram várias as leis que retiraram deles os direitos políticos e até mesmo o direito de propriedade, expulsaram, perseguiram e os transformaram em vítimas de vários massacres nas décadas seguintes a criação do Estado israelense.
Aos judeus, mesmo não nascidos em Israel, é garantido o direito de retorno. Já aos palestinos e seus antepassados, que nasceram nesse território, é sumariamente negado o direito até mesmo de viver. Além disso, o Estado israelense tem como política permanente destruir e avançar sobre os territórios palestinos com incentivo e apoio a novos assentamentos.
Outro exemplo importante é a “Lei de Emergência de Requisição de Terras”, de 1949, que passou a autorizar o governo a confiscar terras em casos de “emergência” e já em 1953 tinham mais de 1 mil ordens emitidas, com metade delas transferindo terras a novos imigrantes judeus.
Em 1952, teve a “Lei da Cidadania” que considerava cidadão o não-judeus, mas que morasse em Israel à época. Por um lado, atendeu a parte residente dos árabes. Por outro, excluiu definitivamente os palestinos que foram obrigados a deixar suas casas.
Ainda na década de 1950 aprovaram a chamada Lei Absenteísta: todo palestino que havia deixado sua vila em 1947 (mesmo que para visitar parentes) teve sua propriedade considerada como “abandonada”. Foram nesses lugares que 95% dos novos assentamentos judaicos, entre 1948 e 1953, se fixaram.
Em 2003, outra lei (temporária, mas renovada anualmente) foi aprovada para proibir a concessão de qualquer residência ou cidadania para palestinos que residiam “nos territórios palestinos ocupados de 1967 e que são casados com cidadãos israelenses”.
Nas regiões onde moram os árabes (que conseguiram permanecer e os nascidos no território histórico) a presença do Estado com serviços públicos (Saúde, Educação, transporte, etc.) também é diferenciada e, quando tem acesso, os investimentos públicos são muito menores.
A legislação que segrega e exclui a população árabe também se expressa e se intensifica na construção do “muro da destruição” que, além de anexar parte importante da Cisjordânia à Israel, destrói aldeias, bairros, famílias, terras cultiváveis e se apropriam das fontes de água.
Gaza é outra parte desse território em que é bem evidente o caráter racista de Israel e seu brutal apartheid. Cidade sob administração palestina e que sofre com constantes ataques, bombardeios e com o complexo sistema do “muro da destruição” com suas cercas e túneis para manter o povo isolado. Sistema também inspirado nos bantustões sul-africanos, territórios utilizados pelo regime branco da África do Sul para segregar o povo negro. Para quem pensa se tratar de um caso isolado, Netanyahu, se referindo a população de Gaza, dá a resposta: “Com a nossa vizinhança, é preciso nos proteger das feras selvagens.” (https://bityli.com/CvPHh).
Todos esses elementos jogam por terra “o mito” de Israel ser a “única democracia do Médio Oriente”. Como diz o israelense Llan Pappé: “A subjugação de minorias em Israel não é democrática. A política de terra de Israel não é democrática. A ocupação não é democrática, destruir as casas dos palestinos não é democrático, aprisionar palestinos sem julgamento não é democrático. A sociedade israelense em seu conjunto é racista em sua atitude com relação aos cidadãos palestinos, os quais observam que grandes aspectos de suas vidas são segregados em uma sociedade de apartheid”.
É isso, Israel é um Estado ilegítimo, racista, segregacionista e genocida. Por um Estado multiétnico, democrático e laico para libertação do povo palestino!