O diretor britânico Ken Loach é um dos poucos a trazer para as telas de cinema histórias sob o ponto de vista da classe trabalhadora. Filmes como Terra e Liberdade (1995), Pão e Rosas (2000), À Procura de Eric (2009), Eu, Daniel Blake (2016), dentre outros, são obras cinematográficas de muita qualidade estética também pelas histórias que nos contam. São filmes que, após você sair do cinema, os enredos continuam na sua mente.
Em Você não estava aqui o tema desenvolvido não poderia ser mais atual do que as novas relações de trabalho em que o empreendedorismo é vendido para os trabalhadores como uma salvação para a sua situação de vida precária, quando na realidade o efeito é o contrário. E traz maior carga horária dedicada ao trabalho, nenhuma proteção trabalhista e o que é pior: escamoteia o vínculo de trabalho para que os patrões fiquem sem nenhum encargo. É exatamente aquilo que muitos chamam de ‘uberização’ do trabalho.
Um pouco de spoiler
No filme, o personagem Ricky (Kris Hitchen) procura uma empresa de entregas domésticas para trabalhar e já com a ilusão de que o seu espírito empreendedor, autodenominado guerreiro, conseguirá lhe trazer um bem estar para si e sua família. Logo no início do filme nos chama a atenção a fala de seu personagem principal de que seus antigos colegas de trabalho são preguiçosos e de que se orgulha por não receber o seguro-desemprego.
A trama também aborda a situação precária de Abbie (Debbie Honeywood), esposa de Ricky, que trabalha como cuidadora numa jornada que começa às 7 horas manhã e só vai terminar às 21 horas. A tentativa do casal de sobreviver com uma jornada tão extensa de trabalho vai mostrando os desafios da classe trabalhadora sem nenhum direito. O Estado capitalista lava as mãos cada vez mais diante dessas novas relações de trabalho, pois existe para atender os interesses de sua classe dominante, a burguesia.
As consequências desses novos tipos de trabalho vão além de sufocar os trabalhadores, atingem também a camaradagem que deve existir entre os “de baixo” e que muitas vezes são colocados no papel de competição com os pares.
Em Você não estava aqui isso fica evidente na escolha das rotas de entrega de mercadorias. Para uma família, nada poderia ser mais desastroso do que ter os pais ausentes de casa e, como o filme aborda, o filho adolescente Seb (Rhys Stone) desenvolver um talento artístico ao mesmo tempo em que se mete em confusões e em que nem uma coisa, nem outra são percebidos pelos seus pais pela falta do tempo que lhes é consumido na superexploração de seus trabalhos.
Uberização: a cartada do capitalismo para sair da crise
Desde que a ideologia neoliberal ganhou força, as regras de proteção aos trabalhadores foram abrandadas. Chegamos agora a uma situação em que os trabalhadores não têm direito algum. Para os capitalistas deixamos de ser trabalhadores para ser colaboradores.
Agora querem nos transformar em parceiros e em empreendedores, tal como se intitulam, mas, sem o direito de estabelecer preços, regras e condições de atuação. Ou seja, a uberização é um disfarce que a relação capital-trabalho mantém não só para nos tirar direitos e evitar que o Estado intervenha como também para ganhar nossa consciência de classe, que como guerreiros passamos a trabalhar 14 horas por dia para conseguir sobreviver e manter o “empreendimento”.
A crise estrutural do sistema capitalista encontrou na uberização a sua mais nova forma de extrair mais ainda dos trabalhadores. Uma vez que esses capitalistas não conseguem manter suas taxas de lucro pela crise que estão metidos e não conseguem sair, encontram na superexploração da força de trabalho o meio de engordar seus lucros.
Não tem jeito: é o mesmo capitalismo de sempre em que o motorista de aplicativo, o entregador de comida e o prestador de serviço trabalham para alguém lucrar às suas custas.
Uma das grandes discussões do momento é o reconhecimento das obrigações trabalhistas dessa legião de trabalhadores pelos patrões, que ganham muito com esses serviços. Em algumas cidades no mundo já surgiram associações desses trabalhadores precarizados. Os tribunais, aqui no Brasil por exemplo, ainda não têm reconhecidas essas relações de trabalho, mas tende a mudar com um maior engajamento desses trabalhadores. É algo mais do que necessário. É urgente que sindicatos, movimentos sociais e organizações de esquerda avancem nessas intervenções e lutas.
A sétima arte de nossos tempos
O diretor Ken Loach é um veterano em filmes com algum tipo de engajamento. Nesse último, um de seus grandes méritos consiste em combater essa falsa crença de que o empreendedorismo vai nos salvar. A propaganda da meritocracia, tão forte em nossa sociedade, é colocada em xeque nesse filme certeiro, ainda com pouco espaço nas salas de cinema justamente por aquilo que nos conta.
O britânico Você não estava aqui, o hollywoodiano Coringa, o brasileiro Bacurau e o coreano Parasitas, esse último ganhador de um inédito e merecido Oscar, são filmes que retratam o nosso tempo sob uma ótica humanista. Num momento em que o avanço da extrema-direita pelo mundo faz com que alguns militantes queiram se alienar para não ver mais tristeza. Mais do que trazer uma denúncia esses filmes lançam um olhar de esperança. Mostram que partir de diagnósticos corretos da realidade que nos rodeia possibilita também buscarmos a superação dessas novas formas de trabalho e de sobrevivência com a organização e a intervenção classista sem nos iludirmos com as armadilhas que os capitalistas colocam para a classe trabalhadora de conjunto no dia a dia.
A Arte imitando a vida
O tema tratado no filme é a realidade de milhões de trabalhadores pelo mundo afora.
De acordo com a OIT (Organização Internacional do Trabalho) em 2019, mais de 42% estão na condição de empregos precários (autônomo, de meio período ou sem vínculo formal). São mais de 1,4 bilhão de pessoas com empregos precários.
Quando se trata de países da periferia do sistema a situação é ainda pior. Segundo a OIT, nos países “em desenvolvimento” 75% dos empregos são precários. Nos países “emergentes”, 46% de trabalhadores são precários.
Nos países centrais a tendência é a mesma. Na Inglaterra, por exemplo, 30% dos trabalhadores tem contrato de “trabalho intermitente” (lá chamado de “zero hora”), quando o trabalhador fica à disposição da empresa. Mais de 50% dos empregos temporários no Reino Unidos são de até 1 ano.
Na Alemanha, metade dos empregos temporários são de até 1 ano. Nesse país também há os “mini Jobs” (mini empregos) sem direitos que nem pode chamar de emprego. Nos Estados Unidos, mesmo com a taxa de desemprego pequena, são 40 milhões de pessoas no trabalho precário.