Na suspensão do carnaval de fevereiro último, em função da alta taxa de contaminados e óbitos decorrentes da variante Ômicron da COVID-19, muitos militantes que se dizem de esquerda pregaram a “desobediência civil” à suspensão do carnaval, defendendo literalmente botar “o bloco na rua”. Alegavam que a suspensão do carnaval era hipocrisia, pelo fato do trabalho presencial ter retornado para a maioria dos trabalhadores, o que expunha os mesmos à conduções lotadas e aglomerações.
Sem tirar, nem por, a defesa da “desobediência civil” no carnaval, na prática, era uma “unidade de ação” com os negacionistas e com bolsonaristas. Ao invés de se colocar pela retomada do lockdow, medida eficaz, juntamente com a vacinação em massa, no combate a pandemia do coronavírus, esse posicionamento foi no sentido contrário, e sob os mais radicais argumentos, vulgarizou o que de fato é uma desobediência civil.
E, enquanto Bolsonaro anda a pressionar o conivente ministro da Saúde, Marcelo Queiroga para trocar o status de pandemia para endemia da COVID-19, a polêmica em relação à retomada do carnaval de rua, em abril, juntamente com o desfile das escolas de samba, é novamente colocada, como se negligenciassem o fato de que o coronavírus ainda segue matando duzentas pessoas por dia no Brasil.
Os blocos, em sua maioria, capitularam à indústria de entretenimento
Na verdade, sob a pele de tão rebelde posição, existem os interesses mercantis que movimentam o carnaval de rua e não apenas o desejo de se divertir, confraternizar, algo próprio de manifestações culturais genuínas. Ora, a retomada dos blocos de carnaval, que veio no Rio de Janeiro, nos anos oitenta, como uma resposta a um carnaval que ficou reduzido ao desfile das escolas de samba (voltado para os interesses das empresas de turismo e para os grandes meios de comunicação) e aos grandes bailes nos clubes (incorporados pelo turismo sexual) também foi absorvido pela indústria do entretenimento.
Isso pode ser constatado em um dos casos mais emblemáticos que foi o do bloco “Suvaco de Cristo”. Criado por amigos, nos anos oitenta e que chegou a ter na sua ala de compositores, o músico pernambucano Lenine, o “Suvaco” (que para sair no primeiro ano, teve que enfrentar a Justiça, a PM e a Igreja Católica em função do nome) se tornou um grande negócio como mostra o documentário “Suvaco – 20 anos”, chegando até adquirir uma sede campestre, face à farta quantidade de recursos movimentados, oriundos de patrocínios e da venda de camisas. Enfim, algo bem distante da finalidade de um bloco de carnaval.
Portanto, não é de se espantar que essa retomada do carnaval de rua, tenha atraído cervejarias e outros patrocinadores, que passaram a investir no mesmo, ao estilo do que acontece há décadas no carnaval baiano e seus caros abadás, reproduzindo também o que já tinha sido feito com o “Suvaco de Cristo”.
O ressurgimento da “esquerda festiva”
Setores da esquerda, que estiveram nesse processo de retomada do carnaval de rua, passaram a ter no mesmo uma das suas políticas culturais, mas sem denunciar o processo de cooptação da mesma pela indústria do entretenimento. Por exemplo, o deputado estadual do PSOL, Eliomar Coelho, todo ano divulga uma agenda dos blocos, uma forma também de se cacifar eleitoralmente. Já o vereador Tarcísio Motta do PSOL, o mais votado no Rio de Janeiro, é figura carimbada nos chamados blocos dirigidos pela “esquerda” e tem, inclusive, no seu corpo de assessores, muitos funcionários que atuam nessas agremiações e em escolas de samba. Já o PCB está na direção de dois blocos de respeito como “Comuna que Pariu” e “Prata Preta”. E por aí vai.
O que é curioso é que a adaptação material à chamada “democracia representativa” e também à indústria do entretenimento faz renascer aquilo que se convencionou como “esquerda festiva”. Muitos que se dizem de esquerda apoiaram Eduardo Paes, em 2020, para derrotar o “mal maior”, Marcelo Crivella, e um dos muitos argumentos usados para esse vergonhoso apoio, foi a política fanática e obscurantista do ex-prefeito contra a cultura e o carnaval. Por exemplo, o sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz, organizador da Feira das Yabás e do Pagode do Trem, que manteve a unidade com Paes, ligado à indústria do turismo, para tentar fazer valer os seus empreendimentos. Em 2022, são os blocos de rua, ignorando às vítimas da pandemia.
Walter Benjamim, a indústria cultural e o aparelho burguês de produção…
Como bem escreveu Walter Benjamim, o aparelho burguês de produção é capaz de assimilar uma quantidade surpreendente de temas, que aparentemente lhe são contraditórios, sem pôr em risco sua própria permanência e da classe que o controla. Tem sido assim com as chamadas pautas identitárias e com manifestações culturais como a retomada do carnaval de rua. Enfim, tudo vira dinheiro.