Jimena Quintero Bravo
Uma revisão dos limites de suas propostas sobre produção e propriedade.
Graduada e Mestre em Ciencias Humanas pela Universidad de la República de Uruguai. Autora do livro “Propriedade e capital na Venezuela de Hugo Chávez: elementos para compreender os limites da política de governo, a partir de Marx e Mészáros”, disponível em pdf no site do Coletivo Veredas.
17 anos se passaram desde que Chávez proclamou para a Venezuela a construção de um socialismo que teria no centro o ser humano, não a máquina ou o Estado, e que deixaria para trás os erros das tentativas do século XX.
Por que é importante refletir hoje sobre o conteúdo desse projeto? Por um lado, a situação que a classe trabalhadora e o povo venezuelano atravessam hoje coloca na mesa a discussão sobre uma alternativa efetiva aos sérios problemas enfrentados. E um dos motes que tem ressoado neste sentido é o de “voltar a Chávez”. Por outro lado, a agudização da crise no mundo inteiro, com aprofundamento das desigualdades sociais, da miséria, da destruição ambiental, etc. torna necessária e urgente a busca de uma alternativa radical a estas desumanidades causadas pelo capital: uma relação social e histórica de produção baseada na expropriação dos trabalhadores em função da acumulação e expansão desenfreada de riqueza, em oposição às necessidades humanas genuínas, e produtora de miséria em escala crescente.
As alternativas levantadas hoje pela maioria da esquerda, entretanto, baseiam-se na continuidade da produção do capital, aliada à ideia de que uma distribuição mais justa da riqueza é possível através de seu controle político. Precisamente, este foi um dos pressupostos do projeto “Chávez” de 2005, [1] o que se expressa nos objetivos e estratégias de suas propostas para criar um “novo modelo produtivo” e figuras jurídicas de propriedade coletiva e estatal.
Um “novo” modelo acima de velhas relações.
Após seis anos de governo eleito com uma proposta de tirar a Venezuela da crise aguda que a assolava desde os anos 80, Hugo Chávez proclamou sua intenção de dar ao país um novo rumo em direção ao chamado socialismo “bolivariano”. Vitoriosamente superada a tentativa de golpe de Estado e a greve petrolífera em 2002-2003 – precipitadas por ações desestabilizadoras de dentro e de fora –, contando com forte apoio popular, em um contexto de receitas petrolíferas favoráveis, o governo Chávez adotou algumas redefinições.
O objetivo não era mais buscar um “capitalismo com rosto humano” (como Chávez reconheceu depois que tinha sido sua orientação até aquele momento), mas acabar com as relações capitalistas na Venezuela que eram responsáveis pela miséria, pelo atraso e pela economia improdutiva. Ele propôs um socialismo de “invenção própria” e espírito “bolivariano”, visando uma progressiva democratização da economia através da intervenção do Estado. Apoiando-se nos recursos fornecidos pelo setor petrolífero e na redistribuição liderada pelo Estado, propôs a construção de um novo “modelo produtivo” que consistia em empresas privadas, públicas e cooperativas adotando uma nova orientação através de incentivos estatais.
As empresas deveriam produzir para as necessidades do povo, promover a participação na gestão, pagar salários “justos” e reinvestir seus lucros em benefícios para a sociedade. Além disso, o novo modelo foi baseado na colaboração dos chamados três “setores” (público, privado e social) com a convicção de que cada um deveria contribuir para o desenvolvimento produtivo do país e que seu peso na economia deveria ser equilibrado. Estes elementos fizeram parte da proposta de Chávez até o final de seu mandato como presidente da Venezuela.
Quais foram os pressupostos deste “modelo”? O ponto de partida eram as relações de produção e as empresas existentes – assim como novas empresas que seriam criadas – a fim de alcançar novas relações. Não se tratava de acabar com a empresa privada, abolir a propriedade privada ou mesmo centralizar a propriedade no Estado. [2] Também não se tratava de eliminar as relações de mercado e o trabalho assalariado.
As relações capitalistas de produção e distribuição seriam respeitadas com a expectativa de dar-lhes uma nova orientação, sem a precedência do lucro e do enriquecimento. O fato de essas relações participarem na viabilização da exploração dos trabalhadores pelo capital, na expropriação de mais-valia (proveniente do trabalho excedente), não era considerado pelo governo um problema na hora de gerar uma nova produção e distribuição. Pelo contrário, tal expropriação era o pressuposto do modelo a ser construído, o que daria viabilidade e sustentabilidade ao modelo e permitiria o avanço para uma nova economia com uma “nova” distribuição do excedente.
A continuidade do capital era pressuposto fundamental do “novo modelo”. Assim, Chávez expressou que o capital “em equilíbrio” é bom, é “básico” para o povo, e o identificou como um fator de produção que poderia ser colocado a serviço do socialismo. [3] Tratava-se de superar a “lógica” do capital de dentro do próprio capital; uma tentativa de democratização e controle político do capital através de seu Estado.
Os dados do período mostram como esses objetivos não foram alcançados, mesmo apesar do grande fluxo de recursos para o Estado: a expansão industrial e o desenvolvimento esperados não foram alcançados; o equilíbrio entre setores não foi atingido (com o setor privado como o principal beneficiário da receita do petróleo); o controle efetivo da produção pelas comunidades e pelos trabalhadores também não (quando não foi diretamente obstruído pela própria política governamental); e as condições de trabalho e salários não foram os esperados (com altos níveis de informalidade e precariedade no emprego).
Além disso, as empresas do setor “social” e estatal não conseguiram escapar da “lógica” capitalista e tiveram sérios problemas de sustentabilidade e corrupção. Também surgiram problemas diante das tentativas do Estado de fixar volumes de produção, lucros e espaços de mercado, demonstrando a relutância do capital às tentativas de regular sua expansão.
Propriedade formal sem controle da produção.
Um dos componentes da proposta era a promoção de um setor “social” ou “comunal” com empresas onde os meios de produção eram formalmente de propriedade das comunidades organizadas e/ou do Estado que as representava em determinadas circunstâncias. Apesar da forma legal de propriedade que os meios de produção adquiriam ali, eles deviam ser utilizados para a mesma função: valorizar o capital através da exploração dos trabalhadores.
Tais formas legais não contradiziam as relação de propriedade do capital nem suas formas capitalistas. Recordemos que na Venezuela não houve apropriação dos meios de produção e subsistência por parte das massas revolucionárias. Assim, a separação da força de trabalho dos meios de produção e subsistência, e sua forma de mercadoria, continuaram sendo os pressupostos de produção e distribuição. Para subsistir, os trabalhadores tinham que vender sua força de trabalho em troca de um salário, produzindo uma mais-valia a ser reinvestida em empresas ou em iniciativas que contribuíssem para o “desenvolvimento do país”.
Seu sustento dependia da valorização do capital, estava ligado à produção de mercadorias. Portanto, o nascimento de novas relações de produção não pôde emergir destas experiências: apesar de os próprios trabalhadores serem os “donos”, eles permaneceram presos no círculo vicioso do capital. Além disso, o controle que era possível exercer nessas empresas limitava-se à adoção de decisões que permitissem sua continuidade e crescimento, no marco da concorrência no mercado.
A propriedade formal dessa parcela de meios de produção não proporcionou um controle genuíno da produção e distribuição, não eliminou a exploração do trabalho (apesar do tamanho do salário), nem produziu para necessidades humanas genuínas e autodeterminadas. Também não colocou o meio ambiente em primeiro lugar, nem preparou o caminho para o surgimento de novas relações de produção. Os incentivos legais do Estado ao chamado Poder Popular (formado entre outros, pelos Conselhos Comunais, depois reunidos em Comunas) em nada alteraram a raiz da falta de controle: o capital permanecia no controle da produção e distribuição em todos os seus momentos, fundado na subordinação do trabalho; no trabalho alienado.
As propostas de Chávez não poderiam constituir uma alternativa radical às relações de produção e distribuição do capital e às desumanidades delas resultantes. Seu limite consistia na continuidade do fundamento dessas relações, que era o pressuposto dessas iniciativas: a exploração do trabalho pelo capital, uma relação de produção que exclui a apropriação e o controle efetivo dos produtores e que sujeita a humanidade à expansão ilimitada de riqueza alienada, concentrada nas mãos de poucos.
Por sua vez, a propriedade foi discutida apenas formalmente sem questionar o capital nem a relação que a fundamenta e lhe confere seu caráter iníquo, e que se reproduz com base na garantia dada por diversas formas legais. Portanto, “voltar” a essas propostas de Chávez, significaria ficar preso nesses limites – nos limites do capital – e, com isso, renunciar à construção de uma alternativa radical às relações de produção e propriedade existentes, em tempos nos quais ela é da maior urgência.
Jimena Quintero
[1] Partimos aqui dos elementos da investigação de nossa autoria exposta no livro “Propriedade e capital na Venezuela de Hugo Chávez: elementos para compreender os limites da política de governo a partir de Marx e Mészáros”, publicado pelo Coletivo Veredas (download gratuito no seu site).
[2] As expropriações estatais concentraram-se em setores considerados “estratégicos” ou com problemas que exigiam intervenção. Apesar de terem sido numerosas, os dados entre 2005 e 2012 indicam que não inverteram o peso predominante do setor privado na economia (ver capítulo 3 do livro mencionado).
[3] Ver por exemplo seu Aló Presidente nº 241 em 2005 e seu discurso na UNEFA em 2009.