A Revolução Socialista terá muitos problemas para enfrentar e um deles, certamente, é a questão da produção agrícola e quais tecnologias serão utilizadas no campo. A produtividade, ainda mais com o crescimento populacional mundial, vai ser decisiva, tanto para acabar com a fome, quanto pelos limites sustentáveis de utilização da terra.
No capitalismo as principais tecnologias estão sob controle privado de modo que a expropriação e socialização dessas tecnologias serão fundamentais. É, portanto, uma questão estratégica.
E esse tema a esquerda de um modo geral não domina, inclusive, muitas vezes diz coisas sem o conhecimento necessário. Para contribuir com essa reflexão, publicaremos uma série de textos de Paulo Paes Andrade, pesquisador, foi prof. da UFPE, e membro do CTNBIO (2006/2012), debatendo questões como a produtividade no campo, melhoramento genético, aplicação da biotecnologia, etc. São textos que refletem o pensamento do autor, portanto, pelo menos por enquanto, não é a posição de Emancipação Socialista.
Deixamos as páginas desse jornal abertas para outras contribuições sobre o tema, pois, quanto mais elementos, melhor será o aprofundamento do conhecimento.
A modificação de plantas e animais nos últimos 10 milênios
Como plantas e animais foram profundamente alterados por mãos humanas nos últimos 10 mil anos? Quem se apropriou desse melhoramento no início da agricultura e como a tecnologia de melhoramento chegou o presente?
Quando vamos à feira ou ao mercado, os legumes, os ovos, a carne, não nos chama a atenção como coisas derivadas de um longo processo de “melhoramento” pelo trabalho humano. A atenção está voltada para a beleza e o tamanho desses produtos, das aves e dos ovos e a cor da carne. E não cometemos nenhum erro: o objetivo é levar para casa comida de qualidade e a bom preço.
Por que é importante entender o processo de “melhoramento” das plantas e animais? Não foram sempre assim? O que a humanidade ganhou com esse melhoramento e o que perdeu?
Engels na obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” nos explicou que a agricultura transformou a sociedade e iniciou o processo de acumulação de capital. O que talvez não enfatizou foi o papel fundamental do melhoramento genético de plantas e, em menor grau, de animais de produção, na evolução da agricultura.
Onde uma civilização se estabeleceu, a agricultura a antecedeu, trazendo com ela os primeiros passos da transformação de plantas selvagens em plantas domésticas. Nesse processo o agricultor sempre buscou características que o ajudavam a obter uma safra que o sustentasse e que lhe desse algum retorno, por escambo ou por venda, para obter outros bens de consumo ou de moradia e trabalho. O processo de melhoramento usou e ainda usa uma seleção continuada por muitas gerações. Nele, o agricultor seleciona e propaga as novas plantas que surgem espontaneamente e que lhe interessam por terem certas características novas de importância agronômica.
Esse processo foi geral e bem-sucedido pelo mundo. Os exemplos mais conhecidos são o milho, o trigo, o arroz, a banana e a cana-de-açúcar. Mas ele ocorreu, com maior ou menor intensidade e por mais ou menos tempo, para todas as plantas e animais que hoje consumimos ou que nos auxiliam. Darwin já nos alertava em seu livro “A Origem das Espécies” que os ancestrais de boa parte das verduras e legumes consumidos na Europa no meio do século XIX não seriam reconhecidos por nós após menos de 2000 anos de domesticação, valendo a afirmação para produtos do dia-a-dia como a cenoura e a couve-flor (Figura 1). Imagine-se, então, o tanto que as plantas e animais foram modificados pela mão humana em 20 mil anos de agricultura!
Por exemplo: o milho é produto da domesticação do teosinte nas Américas e não se propaga sem o auxílio do ser humano. No processo de melhoramento as sementes ficaram cobertas pela palha e quando caem ao solo a espiga apodrece ou seca antes que germinem e sem dispersores naturais das sementes, necessita do ser humano para se reproduzirem.
O bicho-da-seda (uma mariposa), domesticado na Ásia há mais de 8 mil anos, não consegue mais voar e o macho não procura a fêmea e nem a encontra, a menos que esteja a poucos palmos de distância. Todo o processo de reprodução dos insetos e produção da seda é controlado pelo ser humano, numa tecnologia tradicional e cristalizada há milênios.
Não existe hoje na mesa e na roça quase nada que seja “natural”, exceto a) peixes capturados nos mares, lagunas, rios e lagoas e outros animais silvestres, e b) frutos e folhas de algumas poucas plantas que não sofreram um processo de melhoramento anterior.
Quem se apropriou?
Ao longo desses 10.000 anos de história e mais de 100 plantas e animais de importância crucial para a Humanidade, quem se apropriou dos produtos dessa tecnologia fundamental para a humanidade e teve como efeito colateral nocivo a acumulação do capital?
Os primeiros agricultores provavelmente partilhavam as sementes melhoradas, estacas de plantas e animais com caraterísticas mais desejáveis com seu grupo. Novas variedades provavelmente também eram obtidas por conquistas militares ou por negociação entre clãs e outros agrupamentos humanos. Com o surgimento das classes sociais os produtores perderam o controle das sementes e dos animais e o que era coletivo agora tem um proprietário, mas este ainda dependia do sucesso do agricultor em encontrar variedades novas, melhores e mais atrativas para o mercado. Essa situação perdurou, provavelmente, até o séc. XIX, quando Institutos de Pesquisa e Universidades começaram pesquisas voltados ao melhoramento genético. Entretanto, a produção de novas variedades se tornou “capital” para as empresas só com a redescoberta das leis de Mendel, nos primeiros anos do séc. XX.
Ao vencedor, as batatas – o capital leva tudo
A base científica do melhoramento vegetal e animal envolve primariamente a genética. Sem compreender a genética da planta ou do animal, não seria possível ir além do já alcançado pelos agricultores. E esse conhecimento está controlado pelos monopólios capitalistas e pelo Estado através das Universidades e Institutos de Pesquisas. Salvo raras exceções, o agricultor individual não tem mais o conhecimento, as ferramentas ou o apoio financeiro para manter o melhoramento genético capaz de competir com essas empresas e o Estado.
O melhoramento genético, por um lado, foi adotado por todos os países e, por outro lado, o conhecimento e a inovação gerados foram monopolizados por empresas, que comercializam sementes e outros propágulos e matrizes de animais no mundo todo. As empresas estatais e outros programas, que visam garantir ao pequeno e médio agricultor sementes e matrizes de qualidade, sem que este se insira inteiramente na cadeia produtiva da agricultura de larga escala, fazem em geral um contraponto tímido à essas empresas. Nesse processo, ao fim do século XX, o agricultor havia perdido a capacidade de desenvolver suas próprias sementes ou variantes novas de animais.
Assim, como os preços são definidos pela produtividade e com a necessidade de obter lucro, os agricultores são obrigados a comprar sementes de qualidade (sem doenças, boas características agrícolas e alta produtividade) ou bons reprodutores. Com o monopólio, típico do agronegócio, terminam caindo nas mãos dos produtores privados de sementes e matrizes animais; esse processo terminou por enfraqueceu as estatais agrícolas e os programas de apoio aos pequenos e médios agricultores.
O atual processo de desenvolvimento de semente ou de bons reprodutores não permite voltar ao passado, seja como resgate da autonomia do agricultor no melhoramento de sua própria semente ou rebanho, seja como garantia de participação em programas de melhoramento. Uma solução precisa ser encontrada, dentro ou fora do sistema capitalista. É o que será discutido na sequência de textos.