Partimos da compreensão geral do documento nacional debatido na Conferência da Emancipação Socialista ocorrida em abril deste ano. Entre outras caracterizações, ali ficou definido que
(…) o Estado burguês segue se aperfeiçoando como garantia da dominação da classe dirigente. Apesar de muito ter sido escrito que vivíamos sob o fascismo no governo de Bolsonaro, a democracia burguesa segue vigente no Brasil desde 1985, mesmo existindo cada vez com menos liberdades democráticas. Mesmo Bolsonaro teve que governar com as instituições do regime. (…) Através do regime democrático burguês foi mantida a submissão do país aos ditames do capital financeiro e às economias imperialistas, ponto que unifica todas as frações que estão em disputa, seja o agronegócio, seja a burguesia financeira, seja os setores bolsonaristas, sejam as que compõem a Frente Ampla (Alckimin, Simone Tebet, Marina Silva etc.), em torno de Lula, incluindo também as que hoje estão em plano mais secundário, conjunturalmente, como os tucanos e os setores ligados a Ciro Gomes, este último refletindo o setor industrial. (…) Em resumo: a burguesia brasileira, que não tem um projeto próprio e obedece ao imperialismo e aos fundos de investimento do capital rentista, está contra fechar o regime democrático burguês, pois este tem mecanismos para reprimir o movimento de massas e, ao mesmo tempo, garantir alguns espaços democráticos controlados.
As premissas fundamentais acima seguem se confirmando nos movimentos do governo Lula neste primeiro semestre. Mesmo com as coincidências no projeto estratégico isso não significa que as diferenças entre as frações em disputa pelo poder não existam: é um erro colocar no mesmo patamar um gestor da democracia burguesa, apesar da grave crise da Nova República, e um setor com tática golpista e estratégia de fechamento do regime para ampliar as benesses ao capital. Por isso votamos em Lula no segundo turno, criticamente.
A partir das medidas e práticas lulistas, nossa posição é de oposição de esquerda ao governo federal, o qual caracterizamos como um governo burguês (mesmo tendo componentes originados da classe trabalhadora e do povo pobre) em sua essência marcado pela conciliação de classe que tende a fragilidade no momento em que a crise de acumulação do capital dificultará as concessões populares. Sobre isso, diz nosso documento nacional atualizado:
(…) é possível desenvolver a consciência dos trabalhadores e assim afirmar independência de classe frente ao governo burguês de Lula. Não estamos de acordo com Lula e a sua Frente Ampla (que compactua com a extrema-direita e até comporta no seu segundo escalão bolsonaristas), denunciamos a sua proposta de Arcabouço Fiscal (…) como um novo teto social, ainda que não seja fácil fazer essa discussão. Por tudo isso somos oposição pela esquerda aos mesmos, ainda que tenhamos que trabalhar com essa política sem ser sectários. (…) também não podemos capitular à pressão de setores do movimento pró governo, mesmo que isso possa gerar enfrentamentos com estes ativistas.
O governo segue refém do centrão e desde a transição (final de 2022) busca pactuar com o congresso mesmo que isso tenha trazido derrotas e uma visível disputa politica permanente. A opção da esquerda que governa e sua Frente Ampla é não desenvolver enfrentamentos públicos nem no marco institucional, algo diferente da política de Petro, na Colômbia, que tem chamado à ação popular ao menos para pressão às instituições visando à ampliação de direitos. Destaca-se que o governo atraiu para pastas ministeriais União Brasil e MDB, consolidando o ‘frente amplismo’. Isso, porém, não significou a adesão plena destas bancadas às votações no Parlamento.
A extrema-direita parlamentar tem dado a ofensiva opositora ao governo aliada à direita mais tradicional e ‘anti-Lula’. O governo tem permanecido preponderantemente inerte e passivo aceitando as mudanças mais conservadoras nas pautas. Especificamente, comprou a briga contra os juros altos praticados pelo Banco Central, uma pauta bem aceita por boa parte da burguesia. Mesmo neste episódio não ocorre um enfrentamento coerente, pois evita um embate maior e não usa as prerrogativas da presidência. 1
O arcabouço fiscal foi aprovado na Câmara com pioras por parte do relator que foram aceitas pelo governo. Trata-se de uma medida de continuidade, parte do projeto econômico mais geral do capital e especialmente do rentismo, mais flexível e moderna se comparada ao teto de gastos de Guedes.
Ao mesmo tempo, o governo ainda não anulou inúmeras matérias do anterior possivelmente visando à governabilidade: a Reforma do Ensino Médio é um exemplo: recusou-se a revogar o NEM, atendendo o grupo privatista majoritário no MEC. Lentamente, esta pauta vai sumindo do debate público.
Há a tendência ao ‘peleguismo de esquerda’ que arrasta as direções políticas e sindicais, o governismo dentro dos movimentos sociais. Isto e algo a ser denunciado e disputado diuturnamente. Neste momento, os espaços dos movimentos estão marcados pela defesa sem discernimento das medidas do governo, contrapondo-se à independência e à autonomia das entidades.
Neste cenário, a inserção da esquerda anticapitalista é peça importante para fazer os enfrentamentos e a argumentação crítica necessária e para isso é fundamental uma maior articulação e unidade deste campo. Por sua vez, a extrema-direita é quem se coloca como oposição radical e plena, o que nos traz o dilema de como fazer oposição pela esquerda sem ser confundir com a extrema-direita. É preciso evitar o sectarismo, fazendo o bom combate.
Na Câmara dos Deputados, a extrema-direita pautou a discussão sobre a questão indígena no reacionário ‘marco temporal’. Apenas a bancada do PSOL se inscreveu para debater contra a proposta antes da votação. O PT pautou a inconstitucionalidade da lei em votação e jogou para o senado e STF a solução. É um tema caro ao agro e Lula busca se aproximar desse setor. Também o generalato bolsonarista continua com força: não houve punição adequada para os ‘grandes’ envolvidos no “8 de janeiro”.
Apesar de todo o esforço conciliatório petista, a contradição entre governo e parlamento (maioria de direita + extrema direita) não deve ser desconsiderada: é desta forma que se materializa hoje a disputa das frações. Os reacionários não estão de acordo com o governo, por mais moderado que seja, e atuam para desestabilizar: apostam que o governo não chegue ao fim. Esta é a politica concreta da extrema direita neste momento. A maioria do Parlamento enfrentou com força a pauta governista até na estrutura ministerial buscando esvaziar os setores mais ‘ambientais e indígenas’, algo raramente visto com tanto afinco. Hoje a expansão do capital no Brasil passa pela Amazônia, áreas indígenas e certa destruição da floresta.
Do outro lado do ringue, Lula sustenta a conciliação. Vale reforçar que a prática da conciliação (ou tentativa de) levada pelo governo não é conjuntural, é uma concepção deste setor utilizada também em momentos mais favoráveis da política. Paradoxalmente, tem o limite cada vez maior, pois as concessões aos interesses populares necessárias neste modelo cada vez serão mais raras.
Um dos argumentos é sobre o receio dos retrocessos, visto que o bolsonarismo ainda não foi derrotado e toda essa linha moderada e conciliatória visa evitar as ações dos setores mais reacionários. Ora, a escolha pelo não enfrentamento justamente pode ter o efeito oposto e dar cada vez mais espaço para a extrema direita na política. O exemplo chileno deve ser observado com atenção. Lá, após a vitória de uma composição política originada de grandes mobilizações populares, a direita venceu não só o referendo sobre a constituição como as últimas eleições para a nova constituinte. A esquerda bem comportada e conciliatória viu seu espaço se reduzir e os trabalhadores amargaram estas derrotas.
Por tudo isso, a Emancipação Socialista se pautará pela crítica e denúncia de todas as políticas concretas do governo Lula que ataquem os trabalhadores e o povo pobre, bem como seus vacilos, pactos despudorados e inércia. Qualquer eventual medida progressiva do governo deve se combinar com enfrentamentos coerentes e sólidos contra os interesses do capital, algo que não parece ser a opção do momento.
Ao mesmo tempo denunciaremos o papel do Congresso e da bancada majoritária (Lira, Centrão, extrema direita/direita). Cabe reconhecer que neste momento o embate político cotidiano contra a extrema direita neofascista significa denunciá-los, também, na prática parlamentar.
Brasil, junho de 2023.
1 O Presidente da República pode pedir a demissão do presidente do Banco Central em caso de não cumprimento de metas, o que vem ocorrendo. A questão imediatamente é avalizada pelo Senado.