Neste ano se completam 30 anos do lendário CD “Da Lama ao Caos” (1), de 1994, criado por Chico Science & Nação Zumbi. Era parte do chamado movimento ‘manguebeat’ (também obra de grupos como a Mundo Livre S/A) que trazia inovações, síntese de sons e ritmos e, especialmente, cantou (e canta) a capital de Pernambuco e sua desigualdade social, suas formas de resistência e sua urbanidade já caótica em meados dos anos 90.
Em linhas gerais, o novo ritmo proposto trazia a conexão entre mangue + frevo + rock + tambores + maracatu. A ousadia levou a um acordo com a Sony e a produção de “Da Lama ao caos” depois de uma pequena ‘tour’ ao centro do país – via ônibus de linha – com imensas dificuldades materiais. Era uma militância pela arte: coletiva e dura, como sugere este trecho famoso:
O homem coletivo sente a necessidade de lutar / o orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio / São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi! / Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras / Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia (Monólogo Ao Pé do Ouvido).
A arte de Chico e seus camaradas também refletia o momento de grandes dificuldades em Recife: de acordo com dados da Population Crisis Comitee (instituto estadunidense), em 1990 Recife era considerada a quarta pior cidade para se viver no mundo. Por mais que possa ser questionada tal pesquisa, a mesma foi impactante há seu tempo e apareceu na letra de “Antene-se”:
É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo / Escutando o som das vitrolas, que vem dos mocambos / Entulhados à beira do Capibaribe, na quarta pior cidade do mundo / Recife, cidade do mangue, incrustada na lama dos manguezais / Onde estão os homens-caranguejos / Minha corda costuma sair de andada, no meio da rua, em cima das pontes (Antene-se).
Recife era um exemplo da urbanidade desigual, excludente e absolutamente caótica. Herdeira de uma das principais capitanias hereditárias, aquela que derrotou o Quilombo dos Palmares, a capital pernambucana trazia nas suas características fundamentais o passado escravocrata e elitista: os senhores de engenho, os colonialistas e os capitães do mato agora assumiam o papel da burguesia e de seus aliados ávidos pra acumular formas de capital (mesmo que periféricos dentro do sistema capitalista).
Era cidade da queda das barreiras (2), das palafitas, dos mangues nem sempre preservados e da miséria econômica de boa parte de seu povo. Muitas mazelas ainda seguem na atualidade, cabe destacar, e, além disso, Recife também comportou em sua história espaços para o contraditório: de Pernambuco também surgiria a Revolução Pernambucana, a Confederação do Equador e a Revolução Praieira, de 1848, eternizada num dos hits mais famosos da banda:
E é praieira! Segura bem forte a mão
E é praieira! Vou lembrando a revolução, vou lembrando a revolução
Mas há fronteiras nos jardins da razão (A praieira).
Justamente neste espaço do contraditório que resistiam na cena cultural grupos de arte, cultura e música e por onde surgiria o ‘manguebeat’. De um pequeno, tal movimento ganharia a simpatia e adoração de milhares até mesmo fora do país.
“Da Lama ao Caos”, como CD, não foi um grande sucesso de vendas nos primeiros anos. Cerca de 10 mil cópias foram vendidas, algo explicado pela pouca inserção nas rádios comerciais que priorizavam outras bandas e estilos. Por outro lado, o grupo teve grande espaço nos programas de TV, shows e pôde realizar uma tour internacional – EUA, Bélgica, Alemanha, Holanda – algo que nem as grandes bandas da década de 1980 tinham realizado. A banda atraia o público porque cantava a síntese cultural, era uma novidade com qualidade e bom ritmo. Aproximava distintas tradições, como demonstra o conteúdo de letras como essa:
Costumes, é folclore, é tradição / Capoeira que rasga o chão
Samba que sai da favela acabada / É hip hop na minha embolada
É povo na arte / é arte no povo / E não o povo na arte
De quem faz arte com o povo (Etnia) (3).
Chico Science & Nação Zumbi era o novo num tempo de influência internacional e mesmice na cena recifense no início dos anos 1990. No marco político geral era tempo da Nova República e do governo do alagoano Collor – logo depois viria o vice Itamar – que trazia mais lembrança do passado e o neoliberalismo radical como ‘novidade’ excludente e antipopular.
A mescla de tambores e guitarras era uma novidade para o Brasil e para o mundo. E era um som de protesto como na letra que dá o nome ao CD:
E com o bucho mais cheio / Comecei a pensar / Que eu me organizando
Posso desorganizar / Que eu desorganizando / Posso me organizar
Que eu me organizando / Posso desorganizar
Da lama ao caos / Do caos a lama
Um homem roubado nunca se engana (Da lama ao caos).
A aventura do ‘manguebeat’ continuaria, décadas depois. Ainda move milhares para seus shows – e ainda é pouco ouvida nas rádios comerciais – e é um espaço de resistência em tempos de vulgarização de ritmos e especialmente do descaso com o conteúdo das letras. O movimento resistiu a terrível e prematura morte de Chico Science, aos 30 anos, justamente no domingo de carnaval de 1997 (4). A Nação Zumbi atravessou o luto e continuou o trabalho compondo desde então seis álbuns.
A legião de fãs continua, uma imensa bolha daqueles que de alguma forma resistem à cultura pasteurizada e hegemônica. Existem importantes doses de resistência no ‘manguebeat’, na sua história e na sua atualidade. Há uma dose de crítica antissistêmica e, no limite, anticapitalista: uma possibilidade subjetiva de interpretação. E nestes tempos atuais de necessária resistência ao retrógrado, ao negacionismo e ao atraso civilizacional, experiências como essas devem ser muito valorizadas: precisamos dos caranguejos com cérebro.
Neste sentido, o ‘manguebeat’ é resistência cultural e uma esperança por novidades no horizonte.
Viva Chico Science, cientista da cultura popular!
Feliz aniversário, “Da Lama ao Caos”!
Vamo simbora que o mundo arrudiou
E se eu ficar aqui parado eu não vou
Me diz que som é esse que vem de Pernambuco?
Me diz que som é esse que vem de Pernambuco? (Lixo do Mangue)
(1) CD completo em https://www.youtube.com/watch?v=ax4uwXsPPgU
(2) Encostas de barro geralmente presentes nas comunidades mais vulneráveis que costumam deslizar em época de fortes chuvas.
(3) A letra ‘Etnia’ não compôs o CD “Da Lama ao Caos”.
(4) Chico Science morreu na noite do domingo de carnaval de 1997 em um acidente de carro, na rodovia PE-1, entre Olinda e Recife. O Fiat Uno no qual ele estava chocou-se em um poste e infelizmente, depois de socorrido, deu entrada no hospital já sem vida. Uma perda irreparável para a cultura e o movimento ‘manguebeat’.
Segundo a perícia, ele dirigia a mais de 110 km/h, o que justificaria as lesões fatais, nem sempre comuns em um acidente urbano. Curiosamente, a Fiat fez em 2007 um acordo com os familiares de Chico e pagou uma indenização de R$ 10 milhões, um recorde para o tipo de disputa. O principal argumento contra a montadora foi o fato do cinto de segurança ter falhado e não ter segurado o motorista, segundo os peritos.