O resultado da luta de classes na Argentina e no Brasil exerce forte influência na América do Sul, isto é, o que acontece nesses países serve de alguma maneira como referência para a classe trabalhadora e para a burguesia dos demais países.
Essa é uma razão para acompanharmos atentamente o que acontece na Argentina e as propostas de Milei para o aprofundamento do neoliberalismo, pois, caso consiga aprova-las, a burguesia brasileira certamente tentará seguir na mesma direção.
Uma profunda crise econômica e social
Não vamos encher esse artigo com muitos dados econômicos (merecem um texto à parte), mas expor algumas conclusões, consensuais até mesmo entre os setores mais reacionários, sobre o aprofundamento da crise econômica Argentina que é o pano de fundo das atuais indefinições políticas.
O país tem uma dívida externa que compromete mais de 80% do PIB nacional, uma inflação anual de 211%, altas taxas de informalidade dos trabalhadores, desvalorização dos salários (que não acompanham a inflação), em 2022/2023 a produção agropecuária foi bem abaixo dos anos anteriores por conta da seca (provocada também pelo desmatamento e avanço do agronegócio). A soma desses problemas levou a uma queda do PIB/2023 de aproximadamente 2%.
A soma desses problemas econômicos produziu graves consequências sociais no país. A taxa de pobreza alcança 40% da população (18 milhões de pessoas) e 10% são indigentes (quando não acessam nem a alimentação básica), a maioria das crianças vive na pobreza, com aumento dos alugueis 1,2 milhão de pessoas moram nas “villas miseria” (favelas), os serviços públicos deterioram, a criminalidade aumenta, na juventude aumenta a dependência às drogas e o poder do tráfico está maior nas periferias.
Todos esses problemas, evidentemente, transformam a Argentina num barril de pólvora. E a burguesia sabe dos riscos de uma convulsão social.
A burguesia está dividida em como aplicar seus planos
Toda crise traz consigo a questão das alternativas e de como as classes sociais vão buscar superá-la. Do ponto de vista da burguesia é preciso encontrar uma forma que garanta seus lucros e ao mesmo tempo mantenha a classe trabalhadora sob controle. Isso poderia ser por algumas concessões econômicas, mas por conta da crise estrutural do capital está cada vez mais raro conceder alguma coisa. Ou pode ser com a repressão para impor ajustes econômicos duros.
Milei é de extrema-direita, fruto da profunda crise que os partidos e o regime político estão inseridos. Foi eleito com um discurso reacionário e de defesa da ditadura para atacar todos os direitos sociais, trabalhistas e os programas sociais para os mais pobres. Isso demonstra que no capitalismo os governos não conseguem impor medidas duras com democracia. Milei defende fechar o regime político, aplicar esse duro ajuste econômico em nome do déficit zero, incluir a privatização das principais empresas públicas, impor contratos de alugueis pelo dólar, retirar benefícios sociais, aumentar as tarifas públicas, diminuir repasses de verbas para as Províncias, cortar o orçamento da Saúde, Educação, etc.
A tentativa é de impor também medidas antidemocráticas como o “protocolo de Patricia” que proíbe as manifestações de ruas, maior controle policial e obriga as entidades a pagarem os gastos com a repressão às manifestações e ameaça com processos judiciais quem aderir aos protestos. Essas medidas permitem que se imponha como um Bonaparte (acima das instituições) e governe sem o Congresso Nacional e com superpoderes.
Esse era o plano de governo de Milei, mas, esqueceu de combinar com a burguesia que é quem de fato “dá as cartas”. Milei é só um funcionário dessa classe social e em uma situação ideal esse plano seria muito bom para seu governo e para a sua classe. No entanto, traz riscos de uma convulsão social no país e não só contra o governo, mas também contra a burguesia. A ditadura militar os ensinou que a ordem e os ajustes econômicos podem ser sustentados através da repressão e podem precipitar uma crise, colocando o próprio sistema em risco.
Se, num primeiro momento, Milei tinha conseguido negociar alguns apoios no Congresso para aprovação parcial da “Lei ônibus” (altera ou revoga várias outras leis), uma semana depois, foi obrigado a recuar e retirar o projeto da pauta de votação por falta de apoio de deputados. Isso representou uma derrota para Milei.
O Poder Judiciário também não endossou o projeto de Milei e impôs restrições ao “protocolo anti-piquete” de Patricia Bullrich. A Suprema Corte também declarou a inconstitucionalidade da Reforma Trabalhista, que era parte do DNU (Decreto de Necessidade e Urgência). São reveses importantes e contribuem para fragilizar o plano de Milei.
A oposição de parte do Congresso Nacional e do Judiciário, na verdade, é o reflexo da divisão política da burguesia Argentina, que está de acordo em aplicar o ajuste econômico de “cima para baixo” como quer Milei e setores como o agronegócio, mas, ao que parece, a maioria prefere “ir por partes” e também manter o Congresso Nacional como um protagonista político.
Milei ainda não conseguiu convencer a totalidade da burguesia em de seu projeto político e econômico e com isso a crise política tende a continuar.
Nova situação política na Argentina?
A eleição e posse de Milei colocou a possibilidade de uma mudança qualitativa na situação política Argentina. De fato, obteve um apoio eleitoral importante para, segundo ele, reconstruir o país baseado numa política de arrocho contra a classe trabalhadora e aprofundamento das medidas neoliberais. Foi nessa perspectiva que apresentou várias de suas propostas econômicas, acompanhadas de medidas antidemocráticas.
Mas, por falta de apoio do conjunto da burguesia e pela resistência da classe trabalhadora, foi obrigado a recuar e obteve uma derrota marcante. Isso colocou novos elementos na conjuntura.
O plano de “governar por cima” naufragou e, nesse momento, é pouco provável que consiga governar sem o Congresso Nacional e, consequentemente, com setores da burguesia representados no parlamento como era sua intenção inicial.
Sem desconsiderar que Milei tenha alguma força política, pois ainda é apoiado por vários setores da sociedade, sua derrota foi um fato e irá tentar corrigir a rota.
A derrota de Milei no parlamento pode ser explicada pela crise política marcada pela falta de legitimidade da democracia representativa burguesa, na qual nenhum partido consegue amplo reconhecimento, apoio popular e impor a possibilidade histórica de uma ditadura. Assim, quando há divergências no interior da burguesia, as crises políticas se instalam e criam esses impasses como o atual.
Esses fatos, por si sós, em apenas dois meses, indicam uma nova mudança na situação política da Argentina, mas a presença do movimento social nas ruas é um elemento importante na qualidade desse processo. Mesmo com a pouca vontade da direção da CGT (principal central sindical do país) a greve geral de 24 de janeiro e as várias manifestações pelo país foram muito fortes.
É necessário mais e não podemos ter a ilusão de que a maioria da direção do movimento quer seguir com a luta, pois é burocrática e sempre procura o caminho da conciliação mesmo que a extrema-direita esteja no poder.
No entanto, apesar dos limites, a retomada do movimento social tem colocado a possibilidade concreta de construção de uma alternativa de esquerda para enfrentar os planos da extrema-direita Argentina e também superar, sob a perspectiva da classe trabalhadora, a crise da democracia burguesa.
É, portanto, uma nova situação política que está marcada pela incapacidade da burguesia em estabilizar a democracia parlamentar, da ultradireita em não ter conseguido construir uma aliança para se impor na realidade e pela classe trabalhadora ainda não ter força para se colocar na disputa pelo poder.
Quais cenários são possíveis no futuro próximo?
Milei ainda é o governo e tem alguma base de apoio na juventude, em parte da classe trabalhadora e sobretudo nos setores médios da sociedade. Ou seja, vai continuar tentando implementar o seu programa. Nesse sentido, há algumas possibilidades:
- Num primeiro cenário: Cumprir suas promessas de governar por decreto, ignorando parte do parlamento que resiste às suas ofensivas. Seria um regime bonapartista que, como dissemos, não é o regime que a grande burguesia Argentina aposta no momento. Essa “solução” também dependeria das Forças Armadas e não há possibilidade de apoio militar nesse momento. A burguesia recorre a soluções como o bonapartismo em casos mais excepcionais como conter as explosões sociais, algo que, por agora, não está ocorrendo.
- Num segundo cenário: Caso a inflação abaixe até níveis toleráveis, a recessão abrande, as exportações (agricultura, petróleo e minérios) aumentem a entrada de dólares, a situação fiscal melhore, faça algumas concessões e seu governo se fortaleça e consiga repactuar a governabilidade. Pouco provável esse cenário vingar. Primeiro, pela profundidade da crise econômica. Segundo, por necessitar impor uma derrota ao movimento social (em especial aos sindicatos). E, terceiro, pela grande fragmentação política difícil de encontrar pontos que unam as diversas frações políticas burguesas.
- Uma terceira possibilidade: A situação se decompor rapidamente com salários sendo devorados por uma inflação ainda maior, com a recessão reduzindo as receitas, com os preços subindo ainda mais, a pobreza atingindo a maioria da população e o governo buscando aplicar mais os ajustes. Essa é uma hipótese que aumenta as possibilidades de um levante social, como foi em 2001. Nesse caso, abririam mais três possibilidades: 1) O congresso afastar Milei, mas, com a crise de legitimidade não há uma liderança política com força para “pacificar” a situação, unificar a burguesia e o sistema se restabelecer; 2) Uma tentativa de golpe de Estado e a imposição de uma severa repressão à classe trabalhadora; 3) A consciência de classe da classe trabalhadora dar um salto e se colocar como a alternativa política e social.
Nesse momento, não há no horizonte uma solução para a situação Argentina a curto prazo. Assim, o mais provável é a continuidade da crise econômica com suas consequências sociais; a burguesia manter uma unidade mínima; a classe trabalhadora ser empurrada para lutar e defender a sua própria existência material de forma que a temperatura da luta de classes continue alta.
E, em qualquer desses cenários, a chave é os trabalhadores de conjunto se reconhecerem como classe social, desenvolverem sua consciência de classe para se defenderem dos ataques e avançarem na luta contra a burguesia e o sistema capitalista, causa última de todos os problemas sociais. Nesse sentido, o movimento operário e popular vai ser decisivo para a conformação de um amplo movimento de esquerda anticapitalista.