Diante da dura resistência da classe trabalhadora francesa contra a reforma da previdência (aumenta a idade de 62 para 64 anos para se aposentar), e reconhecendo que não iria conseguir aprová-la nos trâmites normais, Macron utilizou o artigo 49.3 da Constituição, que permite o governo aprovar uma lei sem passar pelo Congresso. Criado em 1958 com a Quinta República, é utilizado quando não tem maioria no legislativo. Para melhor entendimento, podemos comparar com os decretos utilizados pela Ditadura Militar no Brasil.
Mesmo previsto na Constituição, é unânime que é um mecanismo extremamente antidemocrático, ainda mais no caso dessa reforma que 75% da população francesa está contra. Agora os trabalhadores não estão lutando para defender o direito à aposentadoria, mas principalmente contra Macron e o sistema que representa.
Mesmo com a aprovação da Reforma da Previdência, os protestos seguem. Nesse 23 de março, a greve geral foi um sucesso, com as manifestações dando um salto de qualidade, com mais pessoas nas ruas e mais radicalidade.
Um elemento importante é a participação de setores operários, como os petroleiros que têm protagonizados conflitos importantes com a polícia, inclusive em alguns deles obrigando as forças policiais a recuarem.
Capitalismo não tem mais nada de bom para oferecer
Já tratamos em outros textos de que a crise estrutural do capital produz muitos efeitos, entre eles o fim do estado-bem-estar-social, fim das concessões econômicas e sociais e mais retirada de direitos, aquilo que Meszáros chama de tendência da equalização – para baixo- da taxa de exploração sobre os trabalhadores dos países ricos e pobres.
Com essa tendência significa que a exploração vai seguir, virão novos planos contra os direitos, a pobreza vai aumentar, a juventude vai continuar sem emprego ou – quando tem- com empregos cada vez mais precários, lembrando que Macron já aprovou a reforma trabalhista em 2017.
Tudo isso indica que as mobilizações devem seguir porque se trata da defesa e da luta por uma vida digna.
O histórico dia 23 de março
A quantidade de pessoas nas ruas foi impressionante. Se Macron achava que impor a reforma por um mecanismo antidemocrático faria com que as pessoas se sentissem derrotadas, se enganou redondamente.
Como disse a dirigente sindical Sophie Binet (sindicato dos técnicos) ao jornal Liberation: “O 49.3 foi um eletrochoque que abalou muita gente, mas traz esperança para o futuro. A convergência entre jovens e trabalhadores é um dos ingredientes de mobilizações vencedoras. ”
O movimento já vinha de 9 dias consecutivos de mobilizações e culminou com a greve geral do 23 de março, com centenas de milhares pelas ruas incendiando as ruas francesas, em alguns casos literalmente.
A CGT falou em 800.000 em Paris, mas mesmo jornais burgueses calculam em um milhão. Foram 3,5 milhões em todo o país e com grande participação de jovens. 250.000 em Marselha, 110.000 em Bordeaux, 55.000 em Lyon, 50.000 em Clermont-Ferrand, 24.000 em Tarbes, 24.000 em Bayonne, 15.000 em Puy-en-Velay. Em lugares como Toulon com 30.000, Bayonne 24.000, Avignon 30.000, Agen 6.000 e Nice 40.000, são as maiores manifestações ocorridas nessas cidades.
Categorias como Petroleiros e trabalhadores do lixo seguem na luta
Quatro das sete principais refinarias do país continuam em greve por tempo indeterminado.
A radicalização é um elemento muito importante nessas lutas, resgatando o método dos piquetes. Na quarta-feira, dia 22 de março, na refinaria Fos-Sur-Mer no sul da França, os petroleiros enfrentaram a tropa de choque (CRS) que, por um momento, foram obrigados a recuarem. Como disse um sindicalista, “Foi magnífico. Como sindicalistas, pedimos às pessoas que viessem ao nosso piquete e várias centenas compareceram. Forçamos o CRS a recuar porque éramos muito mais do que eles”.
Depois a tropa de choque conseguiu, com muito gás lacrimogêneo e cassetetes, tirarem os trabalhadores de uma ponte que haviam ocupado, mas a greve continua.
O governo tem utilizado toda forma de pressão contra os petroleiros. Na refinaria da Normandia (maior refinaria da França) alguns dos grevistas foram “requisitados”, sob pena de até serem multados ou presos, mas um forte movimento de solidariedade e a resistência dos trabalhadores derrubaram essa tentativa.
A partir de uma convocação da CGT local, mais de 300 grevistas da região – estivadores, portos, ferroviários, Chevron e estudantes fizeram uma vigília durante toda a noite na portaria da empresa, impedindo o retorno ao trabalho
Trabalhadores que recolhem lixo em Paris também seguem em luta, enfrentando a polícia e a empresa que tem transferido fura-greves de outras cidades para tentar sabotar a luta. As montanhas de lixo pela cidade mostram a força dessa greve.
Também surgem outras formas de luta, como as operações de “cidade morta”, quando ativistas bloqueiam rotatórias e cruzamentos para fechar o trânsito.
A repressão “a la francesa”
A democracia burguesa garante algumas liberdades só até o ponto que o poder não fique ameaçado. Basta os trabalhadores se levantarem contra as injustiças que a “força democrática” aparece. E na França, exaltada como uma democracia, também é assim.
A partir da persistência e disposição de luta, a forte repressão entrou em cena, com agressões, bombas de gás lacrimogênio contra as mobilizações e muitas prisões, em muitos casos, as pessoas são presas apenas por estarem nas ruas. Dia 17 de março a polícia patrulhou o distrito de Chatelet, em Paris, verificando e prendendo aqueles que eles arbitrariamente consideravam manifestantes. No dia 18, a polícia em Paris fez dezenas de manifestantes sentar contra uma parede antes de prendê-los. No dia 23, quinta-feira, uma granada arrancou o polegar de uma mulher em Rouen. Também existem vários relatos de agressões sexuais feitas por policiais.
Direções sindicais freiam as lutas. Pode vir uma nova direção?
O movimento radicalizou, há greves operárias, a juventude se une aos trabalhadores e uma imensa insatisfação popular contra Macron, ou seja, uma grande oportunidade de não só derrubar a reforma da previdência, mas também avançar por outras reivindicações e derrubar o governo Macron.
No entanto, mais uma vez, a burocracia sindical serve como freio aos desejos e disposição da classe trabalhadora em seguir em luta.
Mas esse processo de mobilização tem tudo para forjar uma nova geração de lutadores e ativistas que já entendem que qualquer conquista só vem com muita luta e organização, construindo novas formas de organização contra a velha burocracia.
E, oxalá, que os ventos da França movam os moinhos da luta de classes no Brasil.