As raízes da ditadura na vida chilena
O capitalismo é um sistema de dominação muito eficaz. Durante a sua história já assumiu diversas formas: o nazismo, o fascismo, regimes teocráticos (como Irã e alguns Estados árabes), democracia burguesa (com um forte componente repressivo, como nos países latino-americanos; com mais liberdades democráticas, como Suécia) e ditaduras militares sangrentas, como foi no Chile por 17 anos e outros países pelo mundo afora.
Em 11 de setembro de 1973 os militares chilenos, liderados por Augusto Pinochet, depuseram o governo eleito de Allende, bombardearam o Palácio de La Moneda e deram início a um dos períodos mais tenebrosos da história chilena. Foram milhares de perseguidos, desaparecidos e assassinados. Partidos de esquerda foram postos na ilegalidade, outros tantos milhares de chilenos se exilaram para escaparem da morte e da prisão.
Com o a derrota do movimento operário, a burguesia e o imperialismo impõem várias medidas neoliberais, como o fim do sistema público previdenciário, privatização de parte da educação, entrega do cobre e da prata para multinacionais e uma economia baseada na retirada de direitos da classe trabalhadora. O neoliberalismo, até hoje, se mantém como um pilar fundamental da economia chilena.
O regime – formalmente- termina em 1990, mas seus tentáculos seguem na vida política chilena, com um Estado dos mais autoritários do continente e os setores de extrema-direita seguem como uma força política importante.
Constituição de 1980 e a transição sob controle
A Constituição de 1980, redigida pela ditadura, foi aprovada por Decreto-Lei e submetida à ratificação por um plebiscito fraudulento em 11 de setembro de 1980. Promulgada em 21 de outubro de 1980, entrou em vigor em 11 de março de 1981, quando Pinochet foi nomeado presidente por um período de 8 anos e com o Poder Legislativo ainda sob controle da Junta Militar.
A Constituição manteve as formas repressivas intactas, como os sanguinários Carabineiros (força policial de repressão que continua com muita influência no país) e as Forças Armadas que são fundamentais para a aplicação das medidas de exceção, um sistema de leis de restrição democrática, militarização da sociedade e muitos prisioneiros políticos (entre eles, militantes pela autonomia do território Mapuche).
Também ficou estabelecido, como etapa final da consolidação do golpe de 11 de setembro de 1973, a realização do Plebiscito (Si o No) para, na prática, definir como seria o processo de transição. Esse itinerário, acordado pelas frações da burguesia chilena, permitiu, mesmo diante da pressão popular, organizar a saída dos militares do poder, mas manter a base política e econômica construída por eles no comando.
O plebiscito foi realizado em 1988 e consistiu em responder sobre a continuidade do regime militar. Se o SIM ganhasse, Pinochet (candidato dos militares) continuaria no cargo por mais 8 anos. Se a vitória fosse do NÃO, o mandato de Pinochet seria prorrogado por mais um ano e, então, haveria nova eleição.
Os militares contavam com a vitória e apostavam na violência como forma de intimidar a oposição defensora do NÃO, mas no meio do caminho tinha o povo. Com uma forte mobilização popular, Pinochet sofreu a primeira derrota e perdeu o plebiscito, sendo obrigado a deixar o poder.
Mas, como dissemos, a ditadura tomou todos os cuidados para que qualquer processo de transição estivesse sob controle e assim Pinochet ainda se manteve por mais oito anos à frente do Exército – protegido pelos militares- e podendo continuar demonstrando força política. Depois de deixar o Exército, assume como senador vitalício e protegido pela imunidade parlamentar. Falece em 2006, aos 91 anos, sem nunca ter sido condenado.
A vitória do NÃO foi uma vitória da classe trabalhadora chilena, mas não sem contradições, pois, mesmo com a derrota, a burguesia conseguia realizar a transição para um regime político que mantinha o funcionamento do sistema na forma já definida pela Constituição pinochetista, mas agora sob governos civis e que, como a história mostrou, aperfeiçoaram e aprofundaram o modelo econômico, político, social e cultural estabelecido pelos militares, realizando, ao longo dos anos, uma série de reformas.
Em 2005, houve algumas mudanças na Constituição e no funcionamento do Poder Judiciário, o fim da indicação de senadores pelas forças armadas e a instituição de mandato para comandantes militares, mas a base ditatorial da Constituição de 1980 permaneceu intacta.
Democracia limitada e controlada
Os golpes militares, com exceção da situação atual no continente africano, ocorrem com muito menos frequência, mas isso não significa o aperfeiçoamento da democracia no mundo. Pelo contrário, a repressão aos movimentos dos trabalhadores segue firme e forte, como podemos acompanhar na França, Equador, Colômbia etc.
Se antes, para aumentar a repressão contra a classe trabalhadora, organizavam golpes e instauravam ditaduras, hoje é a própria democracia burguesa que cumpre esse papel. Ou seja, a democracia burguesa está mais autoritária e utilizando mais instrumentos antidemocráticos (leis proibindo greves, fortalecimento do aparato repressivo, polícias com mais poder político etc.).
E é assim no Chile. Desde a “queda” da Ditadura Pinochet, não há restrição absoluta às liberdades civis, culturais ou políticas como era no período ditatorial, mas quando o povo se organiza e vai para a rua, os carabineiros assumem a repressão, sempre com muito sangue dos manifestantes.
Se o movimento generaliza e questiona as estruturas de poder, a “paz social” e a ordem estabelecida, como foi na rebelião de 2019, também entram em cena Forças Armadas, o Judiciário e outros instrumentos institucionais semelhantes ao período da ditadura que voltam a atuar com repressão massiva e indiscriminada, prisões, mutilações oculares e assassinatos.
É assim que a burguesia chilena se protege da pressão dos movimentos sociais contra o Estado chileno mantendo uma democracia bastante limitada e controlada pela classe dominante, aliás o próprio processo como se deu a transição do regime pinochetista para o chamado regime democrático burguês estava já previsto na Constituição de 1980.
Pelos vários acontecimentos nessas décadas, pode-se dizer que os pilares da ditadura não foram completamente eliminados. Além disso, com o resultado para a nova constituinte, pode-se perceber que a estrutura do Chile de Pinochet ainda permanecerá com força na vida política e social dos chilenos.
Nem perdoar e nem esquecer
A punição dos militares golpistas e torturadores na América Latina é uma luta atual. No Brasil, a Lei da Anistia livrou torturadores e assassinos da cadeia. Na Argentina e no Uruguai vários militares foram punidos.
No dia 11 de setembro o golpe militar chileno completa 50 anos e, ainda hoje, são raros os casos de punição aos golpistas, assassinos e torturadores. Recentemente a Suprema Corte Suprema Corte condenou sete militares (um deles se suicidou quando ia ser preso) que assassinaram Carmelo Soria e o cantor popular Víctor Jara, mas a maioria ainda continua livre e protegidos pelo Estado chileno. A impunidade é a regra.
Mas também existe um importante movimento de resistência que, há décadas, denuncia permanentemente e não deixa a sociedade esquecer as atrozes violações de direitos humanos e os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura civil-militar, exigindo verdade, justiça, reparação e o fim da impunidade.
Esse movimento utiliza várias formas de denúncia, como palestras, documentários, peças teatrais, lançamentos de livros, poemas e as mais variadas manifestações políticas, sociais, artísticas e culturais.
Boric, à frente do atual governo, está apresentando o “Plano Nacional de Busca” para investigar as circunstâncias do desaparecimento ou da morte das vítimas, o acesso dos familiares às informações, medidas de reparação por parte do Estado e, conforme ele mesmo afirma, assegurar a “não repetição” desses crimes, iniciando um caminho para resolver definitivamente centenas de casos de desaparecidos não explicados.
É um plano tímido, mas mesmo assim vai sofrer muita resistência dos militares e da extrema-direita que está bem fortalecida no país. Como Boric cede constantemente aos militares e à extrema-direita, a mobilização popular vai ser fundamental para forçá-lo a aprofundar esse plano para identificar, condenar e prender todos os responsáveis pela tragédia chilena. Nesse sentido a maior – e mais difícil – tarefa é desmontar o aparato repressivo que segue intacto. Se as investigações não chegarem aos militares não haverá nenhuma reparação histórica.
Pressionar e exigir do governo e do Estado medidas concretas são coisas importantes, mas não podemos perder de vista que enquanto houver burguesia, estaremos sob ameaças de repressão, novas ditaduras e muitas restrições democráticas. Só com o poder da classe trabalhadora – o socialismo – vamos avançar na construção de uma nova sociedade e poderemos falar finalmente o “Nunca Mais” para as ditaduras.
A histórica luta dos mapuches pela autonomia dos seus territórios
Os Mapuches reivindicam a autonomia (sem a separação do Estado chileno) da área de Araucânia, localizada no sul do Chile e ocupada há séculos por esse povo. Lutam por sua autodeterminação, para terem o controle do seu território antes da ocupação pelos espanhóis.
O governo Boric – que se diz de esquerda, mas, em relação ao povo Mapuche, vem aplicando as mesmas medidas que os governos de direita – na campanha eleitoral chegou a dizer que reconhecia a autonomia e soberania dos territórios mapuches e que era contra a aplicação dos estados de exceção (restrições de liberdades) porque se tratava de uma dívida histórica e que deveria ser resolvida por outras formas.
A ofensiva contra o território Mapuche se dá em várias frentes: ações do governo para dividir as comunidades, madeireiras derrubando as florestas, o latifúndio concentrando mais terras e expulsando mapuches (ou, sob pressão, comprando a preços abaixo do mercado), a violência policial, entre outras. E o governo Boric por ação ou por omissão, se coloca ao lado daqueles que atacam o povo Mapuche.
A inércia do governo foi respondida com uma forte mobilização Mapuche, de luta pela reconstrução de sua nação, retomada de suas terras ancestrais e defesa do seu território. Enfim eles continuam resistindo à ocupação. São várias ações: bloqueios e mobilizações de rua, incêndios em símbolos de ocupação etc.
O discurso de diálogo prometido por Boric rapidamente foi por terra. Em fevereiro de 2022 ele aplicou o “estado de exceção intermediário” que não passa de um jogo de palavras, pois é o exército que controlava a região”, mantendo a repressão sobre o povo Mapuche. Essa medida já foi renovada mais de 30 vezes.
A resolução mais recente foi a aprovação de uma “Comissão para a paz e o entendimento”, com objetivo de construir o diálogo e propor recomendações. Mas fica a pergunta: como ter diálogo e paz sob as baionetas de um exército que liderou uma ditadura que prendeu e matou milhares de pessoas? Que paz é essa com tantos lutadores mapuches presos?
O Estado chileno vai continuar atacando o povo Mapuche e os mapuches, como sempre fizeram, vão continuar resistindo. E vão vencer!