Um exercício político interessante é comparar as jornadas de junho de 2013 e o levante chileno de 2019. Há semelhanças e muitas diferenças.
O Chile passou por uma onda de protestos em outubro de 2019, quando explodiu uma série de manifestações. Inicialmente era pedida a suspensão do aumento da passagem de metrô na capital Santiago, uma impressionante coincidência com os famosos “20 centavos” de São Paulo.
Tal aumento foi revogado, as manifestações continuaram e suas pautas aumentaram. Não havia uma lista centralizada de demandas e nem um líder, mas suas pautas giravam em torno de uma crítica geral ao neoliberalismo, visto que o Chile é a ‘Meca’ deste modelo sócio econômico. Anos de neoliberalismo e acumulação do capital desamparou grande parcela do povo chileno, em especial, os mais pobres e idosos. Não existe por lá um sistema de saúde universalizado e a previdência é um caso de aplicação extrema da capitalização: a lógica ultraliberal que não dá garantias mínimas aos aposentados.
A onda de protestos se avolumou e a participação amplamente popular levou a demissão de todo ministério federal. Ao lado dos estudantes, um importante ator social se viu nos protestos diferentemente do caso brasileiro de 2013: a comunidade indígena chilena foi importante ator político, com destaque ao povo Mapuche. Suas bandeiras coloridas se destacavam mais que a tricolor chilena e a dura repressão, mais bárbara que no Brasil, deixou um saldo de pelo menos 19 mortos e centenas de feridos. A polícia estatal se especializou em atirar as ‘ balas de borracha’ na altura dos olhos e muitos ativistas feridos perderam a visão.
Ainda, o chamado ‘estado de emergência’ e toque de recolher foi decretado em várias áreas do país e o presidente direitista Sebastian Piñera, ao mesmo tempo que comandava a dura repressão, teve que conceder um pacote limitado de ‘medidas sociais’ que incluíam o estabelecimento de um ‘salário mínimo garantido’, entre outros pontos.
Com o acúmulo da luta, uma enorme manifestação tomou as ruas do centro de Santiago em 25/10, uma sexta-feira, ali já eram exigidas a implementação de reformas sociais profundas. Segundo dados da época, mais de 1,2 milhão de pessoas se concentraram na Plaza Itália e importa destacar que Santiago tem cerca de 6 milhões de habitantes. Convocada centralmente nas redes sociais, tal onda de luta popular foi a maior manifestação de rua desde o fim da ditadura pinochetista: a democracia burguesa chilena tremeu por aqueles dias.
Piñera, fiel escudeiro da herança neoliberal de décadas no país teve que medir as palavras em relação ao que ocorria: “A marcha enorme, alegre e pacífica de hoje, onde os chilenos pedem um Chile mais justo e solidário, abre grandes caminhos para o futuro e a esperança”. A hipocrisia não se sustentou, mas é parte do jogo da política tradicional dos representantes da burguesia.
As mobilizações seguiram nos meses seguintes e merece destaque que em 11 de novembro de 2019 foi anunciada que uma nova Constituição seria construída, um processo ainda aberto e em disputa no país.
Visivelmente o processo no Chile foi popular com uma pauta antipinochetista e, portanto, limitava a participação da direita que também estava no governo federal com Piñera. A esquerda estava nos protestos que eram massivos e amplos como no Brasil em 2013 o que possivelmente influenciou a eleição de Boric, liderança estudantil que assumiu a presidência ano passado encabeçando uma Frente ampla em aliança com o Partido Comunista. A direita, pouco presente nas ruas que protestaram em 2019, voltou com força nas urnas nos anos seguintes aproveitando certo desgaste do governo moderado de conciliação de classes de Boric. Assim, foi derrotada a proposta de nova constituição no referendo e os ‘direitosos’ (direita ‘tradicional’ junto à extrema direita) se tornaram maioria na constituinte montada na sequência.
No caso brasileiro, uma parte da esquerda não estava nas manifestações brasileiras ou estava timidamente. A “esquerda” (PT e PCdoB) era governo em aliança com partidos centrais da burguesia e agiu como ‘bom patrão’. De forma semelhante ao Chile, a pauta foi diversificada e era difícil identificar uma direção (no sentido clássico do termo) do movimento. A ampla massificação garantiu a vitória em relação ao aumento das passagens e educou milhares de jovens sobre a possibilidade de conquistar com mobilização direta.
Houve ali um espaço importante para ação pública da direita e mesmo da extrema direita, ao contrário do episódio chileno. Estes setores atuaram como oposição ao modelo petista de conciliação de classes e se colocavam como ‘antissistêmicos’. Assim, conseguiram colocar sua cara na rua e capturar alguns legados – de forma hipócrita – , como as marcas ‘MBL’ e ‘Vem pra Rua’, mas sem assumir efetivamente a pauta transformadora e radical das ruas.
Importantes lutas também se seguiram ao junho de 2013 contestando os investimentos nos eventos da FIFA, por exemplo. Diferente do caso chileno, não houve aqui um choque institucional como a convocação de uma nova constituinte. Aparentemente, o saldo organizativo e político dos movimentos sociais no Chile após o furacão de mobilizações foi bem maior, embora também tenha ocorrido aqui.
Possivelmente a principal lição comparativa entre os dois processos é que ambos se colocam como um tipo específico de manifestações e luta popular com novas características, se comparados com tradicionais lutas do passado. Educaram milhares nas ruas e nas lutas. E podem voltar a ocorrer.