As recentes eleições argentinas, com os candidatos de direita protagonizando o debate político e econômico mostram o grau de destruição que tem passado o país vizinho há algumas décadas.
A inflação segue descontrolada e os índices inflacionários chegaram a 124% em agosto de 2023. Existem hoje na Argentina 15 modalidades de moeda dólar e em início de setembro, o dólar paralelo fechou cotado em 800 pesos, bem acima da taxa oficial de 366 pesos. Os índices de crescimento econômico do país são baixíssimos e estão estancados há anos. A dívida pública chegou a 85% do Produto Interno Bruto (PIB) em dezembro de 2022. O país tem hoje pouco mais de US$ 30 bilhões de reservas internacionais, quando outro país também castigado pela dívida pública, o Brasil, tem mais de US$ 340 bilhões.
As consequências desse calamitoso quadro econômico, agravadas pela pandemia da COVID-19, têm sido nefastas para a classe trabalhadora e para a população pobre: a parcela da população abaixo da linha da pobreza atingiu a 11,8 milhões de pessoas, ou 40,1% da população. Dentro deste percentual, 2,7 milhões vivem em situação de indigência. Nada menos que 56,2% das crianças de 0 a 14 anos são pobres.
Um histórico de décadas de dependência com o capital financeiro
Os péssimos índices sociais do país são reforçados pelo fato da Argentina ter voltado a a ser tutelada, desde 2022, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), passando a ser o seu grande devedor.
Registre-se que esta submissão a este organismo financeiro mundial esteve por detrás das grandes crises argentinas, desde o período da ditadura militar (1976-1983), passando pelo período hiperinflacionário no governo de Raul Alfonsin (1984-89), que arruinou a sua economia e foi o motor da grande rebelião popular em Rosário, o “Rosariaço”, em 1989.
Já o governo neoliberal do ex-peronista Carlos Menen (1989-99) privatizou e entregou as poucas riquezas argentinas que sobravam e criou a falsa sensação de crescimento econômico. O país, entretanto, deixou de ser industrial e passou a ser agroexportador de commodities (milho, trigo, soja, carne), se tornando mais dependente dos países capitalistas centrais.
O FMI voltou a dar as cartas na Argentina, na catástrofe que foi o governo de La Rua (1999-2001), derrubado pelo “Argentinaço”, em 2001, em função da criação do “corralito” pelo Ministro da Economia Domingo Cavallo, que tentou impedir a corrida da população aos bancos (para que se fizessem retiradas em massa de depósitos nas contas corrente e cadernetas de poupança). Em seguida, três tentativas de presidentes interinos foram derrubados em menos de 13 dias.
Infelizmente, o “Argentinaço” não superou os limites do Estado burguês argentino. Por isso, os dois anos que se seguiram com o impopular governo seguinte de Eduardo Duhalde prepararam a volta repaginada do peronismo com as presidências dos Kirchner (Nestor, de 2003 a 2007 e sua esposa, Cristina, de 2007 a 2015). Porém, a crise estrutural da economia capitalista, em sua nova fase a partir de 2008, fez com que o rascunho de saída nacionalista burguesa proposta pelos Kirchners fosse para o espaço.
Esses foram sucedidos pelo ultraliberal Maurício Macri, que contraiu um novo empréstimo com o FMI, em 2018, de mais 57 bilhões de dólares e deixou o país perto de uma depressão econômica. Foi nesse contexto, que o atual presidente, Alberto Fernández, foi eleito, trazendo de volta, Cristina Kirchner, como sua vice e tendo o apoio do Partido Comunista Argentino. Apesar da retórica inicial contra o FMI, Fernández acabou capitulando e assinando um novo acordo, em 2022, através do seu ministro da Economia e candidato Massa.
A quantas anda a esquerda argentina?
Uma pesquisa eleitoral na reta final da campanha de 2023 mostrou que duas em cada três pessoas são contra as determinações emitidas pelo Fundo Monetário Internacional. O curioso, entretanto, que quem capitalizou esse descontentamento não foi a esquerda argentina e sim um candidato que sempre procurou minimizar os crimes da ditadura (o ultradireitista Javier Milei).
Chamou também a atenção na reta final do processo eleitoral o frágil desempenho da candidatura de esquerda argentina Myriam Bregman, abaixo até do candidato dissidente peronista Juan Schiaretti. O que explica esse quadro de marginalização da esquerda no país, justamente quando um aparelho de contenção dos movimentos sociais como o peronismo vive grande crise e em que existe uma opinião majoritária na população contra as ordens emitidas pelo capital internacional, através do FMI?
Muito mais do que, por exemplo, a crise que se arrasta há décadas no PCA (Partido Comunista Argentino – pelas suas opções políticas como o apoio tácito à ditadura militar) ou a explosão do trotskista Movimento Ao Socialismo (MAS) na década de 90, existem atrás dessa marginalização a desindustrialização da Argentina, que começou em 1976, e a consequente diminuição da sua combativa classe operária. Hoje, por exemplo, o setor de serviços representa 52,5% do PIB e emprega 78,1% da população ativa.
Debater essa situação é um primeiro passo que pode ajudar para a unidade da esquerda. Não somente para os processos eleitorais mas para campanhas e lutas que busquem atrair a imensa massa dos pauperizados por um Plano Emergencial contra a fome, contra os acordos com o FMI e o pagamento da dívida pública. Se é verdade que o peronismo está explodindo, também é verdade que quem estão ocupando o seu espaço são alternativas muito mais à direita.