A polarização política
A polarização entre Trump e Biden é a continuidade e a expressão de um processo maior e anterior às eleições.
Essa polarização pode ser explicada pela crise econômica, social e as dificuldades de encontrarem uma saída que contemple os interesses de todos os setores da burguesia estadunidense. É, portanto, uma polarização em toda a sociedade, até mesmo no interior dessa classe social, contra a classe trabalhadora.
Não passa de um grande equívoco tratar disputa eleitoral como se estivesse em jogo só questões pessoais. É, na verdade, como a classe dominante vai conduzir o Estado, a forma de utilizá-lo para intensificar a exploração da classe trabalhadora estadunidense e também de outros países. Mesmo concordando com as questões gerais de economia e de política (principalmente contra a classe trabalhadora), esses setores divergem sobre como melhor responder à crise.
Temos como convicção a existência de uma crise estrutural do capital (destacamos: essa crise não impede ciclos de crescimentos) que limita a ação da burguesia às medidas paliativas de curto prazo e de conteúdo fiscal que precisa ser renovado a cada ano e que dificulta contemplar todos os setores capitalistas.
Trump representa a parcela da burguesia que busca diminuir ainda mais as liberdades democráticas e aumentar o confronto mais direto com outros países. A disputa com a China sobre a tecnologia 5G é só um dos exemplos. O não reconhecimento do resultado eleitoral e a ameaça de não entregar o cargo não é por “não saber perder”, mas é para reafirmar a política que uma parte da burguesia estadunidense defende. Mantem-se a continuidade da pressão para mais intervenção militar, mais protecionismo.
Biden representa o setor que defende maior negociação entre todos os setores da burguesia estadunidense e internacional, mais ciente de que uma disputa interimperialista tem limites (por exemplo: não podem promover outra Guerra Mundial), que privilegia a imposição da “pax americana” e de seus interesses pela pressão política e diplomática, evidentemente, com intervenções militares pontuais.
Trump, por exemplo, tem propostas mais protecionistas que se chocam com a burguesia ligada ao mercado mundial. Também tem divergências sobre como tratar o acordo com o Irã; sobre o clima (Os Estados Unidos saíram do Acordo de Paris) e sobre a atuação do Estado em política pública (como o “Obamacare” que ampliava o acesso gratuito à Saúde).
Outra expressão dessa polarização é a divisão geográfica dos votos para cada candidato. A regra geral foi o Partido Democrata ganhar nos maiores centros urbanos do país, enquanto o de Trump ganhava nas cidades pequenas e regiões rurais. Daí seguem características desses votos também e refletem mais polarizações, isto é:
– Votos de pessoas brancas, mais velhas, com perfil reacionário, armamentista e mais ricos votaram em Trump. Essa questão é tão forte que mesmo com os problemas enfrentados pelo agronegócio, por conta da guerra comercial com a China (para onde exportaria produtos agrícolas), Trump obteve próximo de 70% dos votos nessas regiões;
– Negros, moradores dos subúrbios dessas grandes cidades e os mais pobres apoiaram Biden. É sim uma divisão política, mas, motivada pela economia.
Biden venceu em todas as cidades com mais de 1 milhão de habitantes, dois exemplos: Nova Iorque teve 85% dos votos e em Washington esse índice foi de 93%.
Essa composição de parte significativa dos votos em Biden, por sua vez, mostra que esse candidato terminou canalizando quase todo o descontentamento político e social demonstrado na crise da pandemia e nas mobilizações antirracista desse ano.
Unidade da Nação e a crise social
Não por acaso as primeiras declarações de Biden se referiam à necessidade da união nacional, de acabar com a polarização e com os vários conflitos existentes na sociedade. É evidente que a fragmentação pela qual passa os Estados Unidos os enfraquece diante do mundo, ainda mais em momento de grandes disputas comerciais e políticas.
Declarou Biden: “Vou ser governo de todos”. É possível? Vai conseguir? Os obstáculos são muitos.
O primeiro obstáculo passa por encontrar uma política econômica que garanta a lucratividade de todos os setores do capital. Como unir a base de uma sociedade se o topo da pirâmide disputa acidamente entre si? Além dessa, há muitas outras questões.
O racismo e a violência policial contra negros e negras são históricos nos Estados Unidos, são instrumentos da classe dominante para manter seu poder. Portanto, é uma política de Estado, de séculos, uma forma de bloquear a rebelião não somente de negros, mas de toda a classe trabalhadora. E mesmo se quisesse resolver a “questão racial” iria conseguir e sem se indispor com a forte direita branca, num país que teve uma guerra civil para acabar com a legalidade da escravidão?
O peso da extrema-direita coloca em evidência outras questões difíceis para construir a unidade como o negacionismo (que nega até a pandemia), as teorias da conspiração e a manutenção do sistema carcerário organizado (muito lucrativo) para o encarceramento em massa, dentre outras.
E por fim, mas não menos importante, a violência (por exemplo: a Klu Klus Kan) é o DNA reacionário da “direita clássica” dos Estados Unidos e tem sido reforçada pelo crescimento de vários grupos fascistas que se organizaram nos últimos anos. Os manifestantes armados e mascarados pró-Trump, no Arizona, é uma demonstração de como podem atuar esses grupos, verdadeiras milícias protegidas pelo Estado.
União nacional com desigualdade, desemprego e subemprego?
Outro tema cruel é o aumento das desigualdades sociais no país. Quase 40 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza “oficial”, milhares de pessoas dependem de ajuda governamental para se alimentarem, enfrentam dificuldades de serviços públicos na área de Saúde, milhares de pessoas em situação de rua, dentre outros tantos.
Esses problemas só poderiam ser enfrentados se reduzissem os privilégios dos ricos, taxassem suas fortunas e limitassem seus lucros. E isso Biden não vai fazer.
O desemprego bate à casa dos milhões. Até antes da pandemia a taxa de desemprego era uma das menores da história, mas, mais de 90% dos empregos criados nos últimos anos não têm proteção legal, ou seja, é só o salário.
A parte dos empregos gerados na era Trump foi de baixa qualidade, sem direitos e sem garantias legais. Isso facilita a demissão em massa como ocorreu durante a pandemia. As empresas demitiram em massa e sem precisarem pagar indenização. A forma mais comum de precarização é o contrato de trabalho temporário e o de jornada e salário parciais.
Dados da Brookings Institution (2019): “44% dos trabalhadores americanos com idades entre 18 e 64 anos (em um total de 53 milhões) labutam em empregos de baixa remuneração, com uma renda média anual de apenas 17.950 dólares. (…) Deve-se, portanto, adicionar ao menos outros 5 milhões obrigados a voltar ao mercado de trabalho (…) trabalham em tempo parcial, em contratos de muito curto prazo ou temporários e que ganham 8 dólares por hora, provavelmente compõe a maioria dos americanos que não receberam aumentos salariais no ano passado. (Luiz Gonzaga Belluzzo, Carta Capital)
Não há nenhuma possibilidade desse quadro se reverter, pelo contrário, a tendência é se aprofundar ainda que com algumas mediações. Quando os problemas sociais continuam, os tensionamentos sociais continuam. É essa situação que leva milhões de pessoas às ruas.
A união nacional de Biden, então, está condicionada a conseguir impor uma derrota (violência estatal, mais encarceramento em massa, etc.) para um setor importante da população e para o setor em luta.
A democracia burguesa tem a sua força
Algo importante para refletir é a força da democracia burguesa nos Estados Unidos, como forma de a burguesia impor seu poder. Ainda que contraditório, pois uma parte importante das pessoas foi às urnas para votar contra Trump, não podemos desprezar a força demonstrada.
O descontentamento e a revolta de amplos setores da classe trabalhadora estadunidense (as mobilizações de negros e negras, por exemplo) viram na eleição o espaço para expressar seu descontentamento. É evidente que não concordamos que as coisas possam se resolver pelas eleições, mas também precisamos compreender a lógica da “lógica da classe trabalhadora”. Num nível de consciência de senso comum, Trump era o inimigo a ser derrotado.
O grande comparecimento às urnas virou o exemplo a ser seguido, o que se via era a grande imprensa, políticos, ideólogos, etc. endeusarem a democracia estadunidense. Até membros do Partido Republicano criticam Trump sobre as declarações alegando fraude no processo eleitoral.
Alguns comemoram a vitória de Biden como a “vitória da Democracia”, nós não. Primeiro, porque “as coisas mudaram para continuar igual”. Como dissemos antes, Biden concorda com o projeto geral que Trump estava encaminhando, as diferenças são na forma. Segundo, que nos Estados Unidos (e outros países) a democracia não significa mais liberdades democráticas, pelo contrário, os regimes democráticos burgueses são cada vez mais autoritários, conservadores e apoiados em aparatos repressivos policial-judicial, um “Estado de Exceção”.
Biden vai aproveitar esse prestígio e legitimação nas urnas para apressar a implementação dos planos contra os trabalhadores. Também vai tentar ir por esse mesmo caminho em relação ao mundo, pois Trump era odiado até mesmo pelos aliados.
No marco das contradições que marcam esse processo, certamente vão aproveitar esse fortalecimento para implementar de forma mais direta os planos de ajustes liberais contra a classe trabalhadora estadunidense.
O sentimento de milhões de pessoas que votaram em Biden com alguma esperança de mudança vai ser traído logo depois da posse, o que poderá acelerar a experiência política com o governo democrata e fazer entender que as ruas são lugares únicos onde podemos conseguir vitórias.
Fica o “trumpismo”?
O grande comparecimento às urnas permitiu Trump obter também um recorde de votos. Mesmo perdendo, teve mais votos do que Obama quando eleito. Por isso, é preciso perguntar até onde foi essa derrota ou tamanho dessa derrota. O não reconhecimento da derrota, a crítica ao “sistema” (se elegeu como não-político em 2016) e as ameaças às instituições parecem servir ao propósito de manter-se vivo para as próximas eleições ou algo como perde-se os anéis, mas conserva-se os dedos.
Nosso modo de ver a explicação não está na personalidade de Trump e sim no processo político mais geral (como a polarização acima) dos Estados Unidos e, de certa forma, no mundo, com a força da extrema direita.
Isso significa que há algo maior acontecendo nos Estados Unidos, ou seja, um movimento de massas deliberadamente de direita (minoritariamente de fascistas) que ataca imigrantes como os “ladrões” de empregos, contra o aborto e o casamento homoafetivo, contra as pautas progressistas sob a alegação de que atacam a moral e a família (que moral e que famílias são essas?) defende encarceramento em massa, é racista, etc., extensa pauta política que permanece muito viva, mesmo com a derrota eleitoral de Trump.
Trump, em relação a eleição passada, teve uma quantidade importante de votos entre negros, mulheres e imigrantes, exatamente os setores mais explorados da classe trabalhadora.
Alguns têm se referido a um “trumpismo”, algo superior ao próprio partido republicano. É cedo para sabermos se Trump vai se transformar em uma corrente política por fora da estrutura partidária, mas também não podemos negligenciar esse fenômeno na base da sociedade, principalmente pelo fato de coincidir com a realidade de outros países como é o caso do Brasil.
Biden, inimigo dos povos
Comecemos pelo que deveria ser o óbvio: Biden não pode ser visto como uma saída de esquerda, é um agente do capital. Essas eleições também mobilizaram a esquerda socialista mundial, inclusive com declarações de apoio a Biden como é o caso do MES, corrente morenista do PSOL.
Quem defendeu o voto em Biden ou celebrou a sua vitória como “vitória da democracia” comete o erro absurdo de a considerar como algo positivo para a classe trabalhadora. Voto ou apoio em Biden é apoiar um agente do imperialismo. O Partido Democrata é um dos pilares do regime burguês nos Estados Unidos, sob seus governos invadiram países, organizaram golpes contra governos eleitos, reprimiram a classe trabalhadora e mantiveram o racismo institucionalizado.
Biden ocupa postos importantes desde a década de 70, nunca defendeu nenhuma pauta a favor da classe trabalhadora e nunca se colocou contra a violência policial, até chegou a dizer que deveria atirar nas pernas. Foi um dos idealizadores das leis de encarceramento em massa.
Até poderíamos entender a ilusão da classe trabalhadora, mas nenhum militante ou corrente de esquerda tem como alegar ilusão com Biden. E se são conhecedores de tudo isso e, mesmo assim, o apoiam então já entendemos como caso de traição de classe.
A extrema-direita mundial perde um ponto de apoio
Como parte da complexidade e das contradições da atual situação política mundial consideramos a vitória de Biden como um ponto para o enfraquecimento da extrema-direita mundial que perde um apoio e uma referência mundial. Partia da Casa Branca a assessoria e as ideias defendidas por vários grupos de extrema-direita pelo mundo. Sofreram uma derrota importante, mas lembremos que ainda são governos em muitos outros países (Brasil, Polônia, Hungria, etc.) e representam uma força política importante em outros (França, Alemanha, etc.).
É uma derrota dos nossos inimigos, mas não significa vitória da esquerda socialista. No Brasil, por exemplo, a extrema-direita deve continuar atuante e atacando o movimento social, mas, ao não ter um centro de apoio estatal, o seu discurso perde um pouco de força porque houve rejeição popular das ideias que defendem.
A esperança está nas lutas
A polarização política também se expressa no enfrentamento entre as classes sociais. No último período, ocorreram lutas importantes com a classe trabalhadora e a juventude tomando as ruas.
Logo no início da pandemia foram muitas greves e mobilizações de trabalhadores de supermercados, entregadores, fast food, médicos e enfermeiros exigindo medidas de proteção ou o fechamento de locais de trabalho como forma de prevenirem da contaminação.
As mais recentes e fortes foram as mobilizações antirracistas e contra a violência policial que puxaram até artistas e esportistas negros/as que, por décadas, se mantinham em silêncio e coniventes com essa violência.
E quando há luta, há a possibilidade de produzir mudanças na consciência de classe da classe.
Não há como saber o ritmo do desenvolvimento da consciência de classe trabalhadora nos Estados Unidos, vai depender muito das lutas e da radicalização que carregarem.
No entanto, há alguns elementos, mesmo contraditórios, que merecem ser observados, pois podem ser algo novo para a ampliação do espaço das ideias de esquerda socialista: o apoio à pré-candidatura de Bernie Sanders sobretudo na juventude; dados de pesquisas feitas durante a campanha eleitoral de apoio popular a um programa de Saúde administrado pelo governo; defesa de um salário mínimo de U$ 15 por hora (antiga reivindicação de trabalhadores de fast food). Além desses há pesquisas com 61% da juventude estadunidense vendo o socialismo como positivo.
É muito pouco para o que precisamos, mas pela paralisia de décadas do movimento social anticapitalista nos Estados Unidos, esses frágeis indícios podem ser a “ponta do iceberg” de uma consciência anticapitalista germinando no mais poderoso país capitalista do mundo.
Há muitos problemas desde as questões raciais, a violência policial, questões de moradia, precarização do trabalho e outros muitos que são como uma panela de pressão. E caso Biden não ofereça alternativas para aliviar (provável que não as tenha para oferecer), tende a explodir um forte movimento de massas.
Com as lutas, os enfrentamentos com o governo aumentam e abrem mais espaços para a classe trabalhadora avançar em sua consciência de classe, romper com o governo e radicalizar suas ações. Assim, seguiremos na luta!