Em 2020, a pesquisa da Fiocruz “Aborto no Brasil” publicada já em 21 de fevereiro trazia a triste confirmação do número de abortos clandestinos no país e as maiores vítimas.
Durante todo o ano os casos seguiram. E em 17 de agosto a grande imprensa destacou o caso de uma menina de 10 anos, no Espírito Santo, estuprada e grávida com o direito de interrupção da gravidez negado e sustentado inclusive pela ministra bolsonarista Damares. Direito garantido somente após grande exposição e em Pernambuco.
Ainda em agosto, o DataSus publicou os números de curetagens e aspirações após aborto provocado ou espontâneo durante o primeiro semestre e apontava que já eram 79 vezes maior que os abortos legais no Brasil. De janeiro a junho de 2020 o SUS realizou 1024 abortos legais e foram 80.948 curetagens e aspirações.
Luta Popular na Argentina Muda o Cenário
Enquanto isso tudo era escancarado no Brasil, a força das lutas pró-aborto nas ruas da Argentina trazia de volta a “Maré Verde”. E em dezembro as forças progressistas aprovaram o projeto do presidente Alberto Fernández que, embora conste da interrupção da gravidez, trouxe a cláusula da “objeção de consciência” em que há a possibilidade de um profissional de saúde se recusar a realizar o procedimento, ou seja, a cumprir a lei.
Alberto Fernández, também muito pressionado pelas forças das ruas mobilizadas, encaminhou o projeto de taxação dos mais ricos para tentar conter a pandemia (Argentina, na ocasião já tinha muitos mortos). E o mês iniciou com a aprovação da taxação de percentuais variáveis de 2 a 3,5% sobre as grandes fortunas do país. O imposto sobre os milionários, projeto de Máximo Kirchner, filho da vice presidente Cristina Kirchner, no entanto, é uma medida temporária.
Imposto Sobre a Fortuna dos Ricos
No dia 5 de dezembro, o Senado do país aprovou definitivamente a criação do tal “Imposto Solidário e Extraordinário”, que recairá sobre cerca de 12 mil pessoas com patrimônio superior a 200 milhões de pesos (2,4 milhões de dólares) e deve ser destinado ao combate da pandemia do Coronavírus. Foram 42 votos a favor e 26 contrários à taxação das grandes fortunas do país.
Carlos Caserio, senador por Córdoba do Partido Justicialista (peronista) e presidente do Comitê de Orçamento do Congresso, fez questão de salientar que 99,98% dos argentinos não terão de pagar a taxa. Esse ainda baixo valor atingido pelo novo imposto, no entanto, será capaz de gerar para os cofres públicos argentinos 3 bilhões de dólares, sendo 20% desse valor para compra de materiais e instrumentos de emergência sanitária para a covid-19, 15% para programas de desenvolvimento de áreas pobres, 20% para bolsas de estudo, 20% para investimento de pequenas e médias empresas e 25% para a exploração de gás natural.
O imposto terá duração apenas para o enfrentamento do problema da Saúde no país, mas representa uma vitória das ruas e de forças peronistas, apesar de divididos contra a direita do ex-presidente Maurício Macri. A maior força de oposição de direita ao atual presidente Alberto Fernández, Juntos Pela Mudança, rejeitou a nova lei. A Associação Empresária Argentina, patronal com maior influência no país, considerou que o imposto afetará investimentos e empregos. Discurso bem parecido ao de Paulo Guedes e Bolsonaro no Brasil.
A Argentina não está isolada na busca da tal “contribuição solidária” dos riquíssimos. Dentre as propostas de Luis Arce, do MAS de Evo Morales, para seu governo na Bolívia estava o “fundo solidário”, ou seja, o imposto sobre as fortunas. No dia 28 de dezembro, promulgou a Lei 1357 taxando patrimônios superiores a 30 milhões de bolivianos, a moeda do país. Também o Uruguai, governado pelo conservador Luis Lacalle, criou o Fundo Coronavírus, com apoio de sua opositora Frente Ampla (partido de Mujica). Este fundo, porém, se constitui de cortes de salários do setor público.
Ainda Falta Para o Mundo Ficar Perfeito
O que a notícia da taxação das grandes fortunas tem de bom é o reconhecimento de que a propriedade privada dos meios de produção não pode ser de algumas famílias apenas e que a classe dominante necessita ser responsabilizada por isso. E a taxação, no caso da Argentina especialmente, acontece como uma resposta à crise geral da pandemia do Coronavírus. Apesar de a doença acometer qualquer pessoa, é potencialmente cruel com quem precisa sair para trabalhar ou para procurar emprego, que não tem condições de isolamento e que não pode arcar com planos de saúde privados. Por este aspecto, vale comemorar o novo imposto.
Porém, o chamado à “solidariedade dos ricos” do presidente Alberto Fernández não satisfaz nem as necessidades de quem acredita e luta por um mundo com igualdade social. O imposto sobre grandes fortunas não pode ser apenas uma medida emergencial diante da catástrofe que vivemos hoje. E há ainda catástrofe permanente da desigualdade social que leva a maioria da humanidade a perder seus filhos para doenças curáveis, crime, prostituição, anestesia do fundamentalismo religioso em lugar de uma Educação de qualidade, etc. As grandes fortunas realmente não precisam apenas serem taxadas: precisam acabar.
Direito ao Aborto Seguro Para Não Morrer
O governo Macri vetou, em 2018, no Senado, o direito irrestrito ao aborto, apesar de aprovado na Câmara dos Deputados. Macri, porém, não esteve sozinho na cruzada contra a legalização do aborto no país e a forte influência das igrejas católica e evangélica conseguiu que o projeto para descriminalizar a prática fosse recusado por oito vezes.
Em 2020, o Senado argentino, após muita pressão e mobilizações de mulheres nas ruas, finalmente foi aprovada lei que dá autonomia às mulheres sobre seus próprios corpos. Mas, foi uma vitória apertada e o projeto foi aprovado por 38 votos a favor, 29 contra e uma abstenção.
Qualquer mulher, independente do motivo, poderá interromper uma gestação de até pouco mais de três meses. Os casos antes previstos em lei eram ameaça à vida da gestante e mesmo em casos de gravidez decorrente de estupro. A lei aprovada em 30 de dezembro, no entanto, coloca menores de 13 anos ainda sujeitas ou acompanhadas pelos pais ou representante legal. São significativos na Argentina os casos de garotas entre 10 e 14 anos grávidas. Colocar a família acima do Estado nesse momento pode representar a não garantia da realização do procedimento mesmo que seja o desejo da gestante. As maiores de 16 anos poderão decidir sozinhas e as adolescentes com mais de 13 anos e menos de 16 precisarão de uma autorização se houver algum risco para sua Saúde.
É importante lembrar que a defesa da legalização do aborto não se dá para que seja realizado, pois acontecem cerca de 370 mil abortos clandestinos que matam dezenas de argentinas por ano.
Ni Una a Menos: Lutar Por Todos os Cantos
A mídia burguesa se aproveitou da notícia na Argentina e a colocou como mérito do governo, alardeando ser a primeira grande nação da América Latina a legalizar o aborto. Porém, não é bem assim: Cuba permite o aborto irrestrito nas primeiras dez semanas de gravidez desde 1965. Uruguai, Porto Rico e Guiana autorizam a prática até a 12ª semana. No México cada estado da federação legisla sobre temas como o aborto. Cidade do México e Oaxaca garantem o aborto gratuito ate 12 semanas de gestação também. Na América Anglo-saxônica o aborto está garantido às mulheres. O Canadá não faz nenhuma restrição e nos Estados Unidos o aborto é legal, mas cada estado tem seus parâmetros.
Tratar a descriminalização e legalização do aborto como uma questões de liberdade individual é usurpar da classe trabalhadora sua história de luta. O primeiro país a legalizar o aborto foi a Rússia, em 1920, como conquista do Socialismo. Lá, naquela época, as mulheres recuperaram a dignidade perdida com milênios de patriarcado: direito ao divórcio, igualdade salarial, descriminalização da homossexualidade. Esses avanços daquele momento histórico contribuíram para brecar muitas problemas já “naturalizados”. A proibição do aborto é um desses problemas e não pode ser naturalizado. A Igreja Católica deixou de permitir a interrupção da gravidez em 1869 por um acordo entre o Papa Pio 9o e o imperador Napoleão 3o, que precisava estimular a natalidade na França. Quer dizer, o aborto não foi proibido por dogma religioso, mas por questões políticas.
E hoje o número de países a autorizar o procedimento só está sendo ampliado porque as lutas das organizações de esquerda nas ruas e as mobilizações de movimentos feministas como o Ni Una A Menos, criado em 2015, têm sido incansáveis em expor o quanto a opressão à mulher se assenta em torno da sacralização da gestação. As ruas argentinas viveram manifestações intensas nos últimos anos e as mulheres estiveram à frente como também as Mães da Praça de Maio, que atuam ainda hoje na busca de desaparecidos políticos na época da Ditadura Militar.
Presas Que Nem Santas no Altar
A influência católica desde a colonização da América Latina conjugou-se muito bem com o cenário de exclusão e miséria que foi desenhado ao longo dos séculos. Para a submissão da mulher trabalhadora há ainda o reforço ideológico de poderosas entidades religiosas e inúmeras denominações evangélicas na região. A mulher, na tradição cristã, pode ser associada à “pecadora” Eva que provou do fruto da árvore do conhecimento ou à imaculada Maria que “permaneceu virgem e pura” mesmo tendo gerado outro ser humano. Essa tradição, embora não advogue pela virgindade biológica de Maria, defende sua rigidez moral.
Refletindo sobre a realidade da mulher latino-americana, em 1989, surgiu o grupo Católicas Pelo Direito de Decidir, que defende concepções de planejamento familiar, incluído aí o aborto legal e seguro como direito reprodutivo para permitir que as mulheres escapem dos arquétipos de pura ou de pecadora. Esse grupo também esteve na luta pela aprovação da lei que legaliza o aborto na Argentina, juntamente a outros grupos feministas.
O direito conquistado pelas mulheres argentinas não pode ser esvaziado de seu significado classista. Abortos em clínicas clandestinas com todo o cuidado nunca foram negados às mulheres que podem pagar, que conseguem repousar e têm quem cuide de seus outros filhos. O direito que foi conquistado pelas mulheres argentinas da classe trabalhadora foi uma conquista também para todas as trabalhadoras do mundo, expostas à opressão ideológica, moral, psicológica e física, além de toda exploração capitalista que tem a miséria, o machismo, o racismo e a homofobia como sustentações.
Precisamos seguir o exemplo e tomarmos as ruas: contra a criminalização do aborto, pela legalização, garantia do aborto seguro, por Educação Sexual nas escolas, pelo direito de decidir sobre a própria vida e o próprio corpo! Fora Damares com todo o governo Bolsonaro!
Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres (Rosa Luxemburgo).