Roberto Ramírez
O curso da Revolução Cubana nos remete a questões teórico-políticas mais amplas, que se relacionam com o balanço das revoluções do século XX. Por exemplo, o caráter social dos Estados ditos “socialistas” e, especialmente, a natureza das revoluções de pós-guerra que expropriaram o capitalismo (como China e de Cuba).
Isso se relaciona, por sua vez, com outro tema teórico e de avaliação histórica, mas também de imensa importância prática, porque se relaciona com a estratégia para o relançamento da luta pelo socialismo no século XXI: em que medida outros sujeitos sociais e políticos podem substituir a classe operária e trabalhadora na revolução socialista? Até onde isso é possível?
O problema do “substituísmo” se colocou com toda a sua força ante a realidade de processos tais como China e, em seguida, de Cuba, processos nos quais o proletariado não era, social ou politicamente, o sujeito de revoluções que expropriavam o capitalismo e que, ademais, se reivindicavam socialistas. Isso parecia desmentir a concepção originária de Marx que estabelecia relações unívocas entre classe trabalhadora, revolução dos trabalhadores, ditadura do proletariado e socialismo1.
Em maior ou menor medida e de formas diversas, grande parte do trotskismo do pós-guerra deu respostas “substituístas” aos impasses teóricos. Respostas que, por sua vez, implicavam uma revisão franca e honesta – como a de Nahuel Moreno – ou hipócrita – como a de Ernest Mandel – da teoria da revolução permanente de Trotsky, que, seguindo o marxismo clássico, colocava o centro de gravidade nos sujeitos sociais e políticos. É que as teorias substituístas, para explicar por que os sujeitos sociais e políticos não proletários faziam revoluções socialistas, encontravam a resposta não antes de tudo nos sujeitos, mas sim em uma sobredeterminação dos fatores “objetivos”: crises econômica e política, ataques do imperialismo e das burguesias, pressão irrefreável das massas, etc. “que não permitiam outro caminho senão a revolução socialista”.
Uma operação teórica semelhante se aplicou aos estados onde o capitalismo havia sido expropriado. Ainda que nesses a classe trabalhadora como sujeito social e político – como a “classe para si”, de que falava Trotsky – pouco ou nada teve a ver com a conformação e condução desses processos, a maioria das correntes os declararam “estados operários”, cujo conteúdo social era a “ditadura do proletariado”, mas sob uma forma ou regime burocrático. A expropriação da burguesia era suficiente para dar o caráter operário ao Estado… mesmo que a classe trabalhadora não tivesse desempenhado papel algum nele como classe para si.
Uma pergunta incômoda que muitos preferem não enfrentar
Quanto aos “estados operários” sem operários que chegaram ao século XX, há uma questão incômoda para a maioria das correntes que reivindicam o marxismo revolucionário: Como se retornou ao capitalismo sem que houvesse contra-revoluções sangrentas, guerras civis ou invasões imperialistas que destruíssem esses “estados operários”; sem que retirassem da classe trabalhadora (supostamente a classe dominante) a propriedade dos meios de produção e, em geral, o domínio da sociedade?
Isso, insistimos, teria ocorrido sem resistências significativas da classe trabalhadora. Os trabalhadores de estados burgueses do ocidente teriam resistido mais as privatizações de empresas públicas que as classes trabalhadoras da URSS, do Leste e da China à restauração do capitalismo. Não fizeram grande coisa para defender a propriedade nacionalizada (para não falar do suposto “estado operário” em seu conjunto e de sua “ditadura do proletariado”)2.
É verdade que, excepcionalmente, em Cuba, não podemos, todavia, falar de pleno retorno ao capitalismo. Mas a questão também se aplica, é evidente que, com muito mais demora, hoje o curso também aponta perigosamente para o sentido restauracionista.
Surpreendentemente, quase todas as correntes trotskistas varreram para debaixo do tapete esse problema transcendental ou se limitaram a análises superficiais para se esquivar do problema. Isso tem acontecido não apenas em correntes que se caracterizam por seu baixo nível teórico, como PSTU-LIT ou aqueles agrupados na UIT antes de se separarem. Também tem ocorrido, dentre outras, como no mandelismo europeu, que exibe uma infinidade de quadros intelectuais de primeiro nível. Em nossa região, é o caso do PTS-FT que, embora dedique alguns esforços à elaboração política, o faz a partir de uma matriz teórica em geral rígida e conservadora. Essa corrente tem se caracterizado por não ter sensibilidade alguma na abordagem de enfrentar o debate e as reflexões reais sobre as experiências anticapitalistas do século passado.
Voltando a atenção ao mandelismo, é inconcebível que nunca se tenha “passado a limpo” e confrontado os fatos e as teorias construídas por Ernest Mandel sobre os estados operários “e suas burocracias, cujo último grande trabalho – um livro de 400 páginas dedicado à situação da URSS – iniciava com a tese de que era “inconcebível” e “ridículo” pensar que Gorbatchov ou a burocracia soviética como um todo desejava restaurar o capitalismo, vez que isso seria contra a sua natureza e os interesses e equivaleria a “realizar um hara-kiri“3. Meses depois, a União Soviética e quase todos os “estados operários” desapareciam na noite da história. Nessa corrente, realizaram-se muitas especulações sobre o evento, tingidas todas de um pessimismo insondável, utilizado, ele mesmo, como justificação “teórica” das piores capitulações oportunistas. Porém, jamais se ouviu falar sobre uma reflexão autocrítica que tenha posto em questão a teorização sobre os “Estados Operários” que, durante décadas, presidiu a Quarta Internacional liderada por Ernest Mandel.
Cabe insistir sobre isso porque se trata realmente de um problema generalizado. O morenismo (ou melhor, as correntes que resultaram de sua implosão, contemporânea com a da URSS) não fez muito melhor do que seu velho adversário mandelista. Outra grande corrente do trotskismo, liderada pelo SWP da Grã-Bretanha, devota que é da teoria do “capitalismo de Estado” de Tony Cliff, entendeu que a questão deveria ser guiada de outra maneira: A URSS fora sempre capitalista e, agora, tratava-se apenas de uma privatização de empresas estatais.
No entanto, é uma questão fundamental a questão de como, sem maior resistência da classe trabalhadora, voltou-se para o capitalismo sem o intermédio de uma contra-revolução sangrenta e/ou uma guerra civil que destruísse o “estado operário”. Como se retirou da classe trabalhadora (a classe supostamente dominante) a propriedade dos meios de produção?
Seria o primeiro caso na história em que uma “classe dominante” permitia a retirada de seu poder desta maneira, sem resistência alguma. E esse processo teria, evidentemente, raízes profundas, porque (sob formas distintas) se desenvolveu tanto em países onde houve uma queda dos regimes stalinistas (ex-URSS e Leste) quanto em países onde o regime se manteve (China, Vietnã)4.
Hoje, em relação à Cuba, esse grande problema teórico-político adquire enorme importância prática, dadas as fortes pressões restauracionistas que ai existem.5
Depois desses eventos grandiosos, falar de “estado operário” nos coloca diante de um grave problema conceitual e teórico. “Estado operário” só pode significar que os trabalhadores são a classe dominante desse estado (mesmo sob o controle mais ou menos usurpador de uma burocracia). Ou seja, uma ditadura do proletariado, para usar o conceito de Marx (que nunca falou de “Estado operário”). E se, excepcionalmente, sendo os trabalhadores a classe dominante, deixaram-se expropriar dessa forma, com uma facilidade tão escandalosa, o poder e a propriedade, ter-se-ia de concluir que o marxismo se equivocou no que diz respeito à possibilidade de o proletariado ser a classe que, quando liberta, pode libertar todos os oprimidos e explorados, pôr fim ao capitalismo e, acima de tudo, liderar a construção de uma nova sociedade sem exploradores e explorados, o socialismo.
Insistimos nesse ponto: defender “estado operário” depois do que aconteceu na ex-URSS e no Leste (e também, de outro modo, na China) significa de modo implícito atestar radicalmente a incapacidade do proletariado para realizar essa tarefa histórica. Por isso, surpreende ver tantos marxistas e trotskistas ainda falando tranquilamente dos (extintos) “estados operários” sem serem capazes de somar dois mais dois6.
Essa cegueira “ortodoxa” simplesmente joga junto ao grupo de charlatões que desde a queda do “Muro de Berlim” decretou o desaparecimento da classe trabalhadora e/ou decretou a incapacidade desta para estabelecer seu próprio domínio. Mas isso, ao mesmo tempo, exige adequar a teoria aos novos fatos históricos e experiências da luta de classes sejam revolucionárias ou contra-revolucionárias. Isso é o que o marxismo faz desde suas origens (é isso que, em certo sentido, deve-se retomar). Por isso, é conveniente recordar como também foi mudando, com relação à experiência histórica dessas realidades e com a luta de classes, a mesma teoria do Estado.
Alguns fantasmas da teoria marxista do Estado
Marx não desenvolveu uma teoria do Estado tão amplamente como fez com a teoria do valor e da mais-valia. Isso não significa, é claro, que não produziu elaborações fundamentais que possibilitem aos marxistas uma base sólida de compreensão teórica do Estado, ou seja, das instituições políticas que permitem a um setor (minoritário) da sociedade dominar e explorar o restante.
Mas, ao mesmo tempo, o caráter fragmentário do legado de Marx nessa área deixou grandes lacunas e problemas pendentes, especialmente porque tais elaborações se debruçavam sobre um tipo concreto de sociedade, de estado e até mesmo de situação política (como por exemplo, o Golpe de Estado de Napoleão III). Isso apresenta dificuldades para sua generalização.
Assim, não são exatamente as mesmas considerações teóricas sobre o Estado (nem a característica fundamental que Marx destacava) no O 18 de Brumário (um aparato burocrático que se coloca acima da sociedade, bonapartismo, etc.), nos Escritos Sobre a “Sociedade Asiática“ (um estado com um estrato burocrático que explora uma sociedade sem “classes” no sentido estrito), ou as de Engels na A Origem da família, da propriedade privada e do Estado (o Estado como instrumento político de uma classe dominante, mesmo com exceções a essa regra, como o absolutismo ou o bonapartismo).
Para complicar as coisas ainda mais, um conceito central na teoria do Estado, a definição de classe social, nunca foi desenvolvido por Marx. O maior teórico da luta de classes jamais formulou uma definição universal do que é uma classe social. Pelo menos, uma definição que seja válida não só para o capitalismo – onde a coisa está um pouco mais clara – mas para todas as formações sócio-econômicas em que prevalece a exploração do homem pelo homem e, portanto, existe o Estado. Em princípio, podemos tomar como referência o lugar das classes nas relações de produção; entretanto, na verdade, isso só é relativamente preciso no capitalismo.
É no terceiro tomo de O Capital, que Marx dá, de passagem, a definição mais “global”, mais geral de Estado (definição que, ademais, chama a atenção porque não utiliza a palavra “classe”). Com ela, Marx pretendia abarcar “toda forma específica de Estado”. É uma definição que convém levar muito em conta também para o problema dos Estados que surgiram das revoluções do século XX: “A forma específica na qual trabalho excedente não pago é extraído dos produtores imediatos determina a relação de dependência entre senhores e não-senhores, tal como se depreende da própria produção, e que, por sua vez, retroage sobre ela. É também a base sobre a qual repousa toda a estrutura da comunidade econômica e as condições mesmas de produção, e, portanto, ao mesmo tempo, a forma política específica.”
E mais adiante diria: “É sempre nesta relação que encontramos o segredo íntimo, o fundamento oculto de todo o edifício social, e, portanto, também a forma política, revestida pela relação de soberania e dependência; em uma palavra, de toda forma específica de Estado” (grifo nosso).
Recordemos, finalmente, que, nem para Marx nem para Engels, o estado deveria ser necessária e diretamente o Estado exclusivo e/ou direto de uma classe “proprietária” (no sentido, por exemplo, da sociedade escravista antiga ou a atual, capitalista). Marx já havia analisado o fenômeno das sociedades chamadas “asiáticas”. Por sua vez, Engels dizia que “por exceção, há períodos em que as classes em luta estão tão equilibradas que o poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em relação a uma e outra classe”7.
A abertura, no século XX, de uma “época de guerras e revoluções” trouxe à tona a necessidade de reformular e ao mesmo tempo restaurar a teoria do estado em sua essência revolucionária, já que no interior da Segunda Internacional eram difundidas interpretações reformistas. Havia sido “esquecida”, entre outras coisas, a necessidade da destruição revolucionária do Estado burguês e da constituição de outro estado: “ou seja, o proletariado organizado como classe dominante”. Essa tarefa, para a qual atenta Lênin em O Estado e a Revolução, define o Estado proletário numa forma essencialmente político-social: não será um estado de burocratas, mas um estado dos operários armados… um estado realmente democrático: o estado dos deputados operários e soldados” (grifo de Lênin).
Anos mais tarde, Lênin deverá corrigir isso parcialmente, ao afirmar que não existia simplesmente um “Estado Operário”, mas que a realidade da URSS havia produzido um “Estado Operário com Deformações Burocráticas”.
As Concepções na Oposição de Esquerda
No início dos anos 30, era evidente que essa caracterização da União Soviética já era ultrapassada. A URSS já não era o “estado democrático de operários armados” e o câncer das “deformações burocráticas” já tomava todo o Estado. Então, na Oposição de Esquerda foram construídas duas definições.
Cristian Rakovsky, que em muitos aspectos havia se adiantado a Trotsky na análise do fenômeno da burocracia8, sustentava que “de um Estado Operário com Deformações Burocráticas – como Lênin definira a forma política do nosso estado – estamos caminhando para um Estado Burocrático com Restos Proletários Comunistas“9.
Com esta definição, Rakovsky seguira os caminhos clássicos definição político-social do Estado. Isto é, levar em consideração essencialmente “a relação de dependência entre senhores e não-senhores”, que, por sua vez, baseia-se na “forma específica na qual o trabalho excedente não pago é extraído dos produtores imediatos”.
Mais tarde, Trotsky construirá definição diferente, mas, em certos aspectos, não absolutamente contraditória a de Rakovsky, a de “Estado Operário Degenerado”.
Assim, na década de 30, desenvolve-se o trabalho teórico de Trotsky a respeito deste curso inesperado de degeneração burocrática do primeiro Estado da história originado de uma revolução dos trabalhadores. Sua obra teórica é monumental, considerando que não só se tratava de um fenômeno inesperado, mas de algo absolutamente novo, “sem precedentes” nas experiências anteriores de luta de classes e eventos históricos. Mas isso dá a todos a sua obra – desde A Revolução Traída até as dezenas de trabalhos menores, porém não menos importantes – uma característica que muitas vezes não é levada em conta: obrigatória e inevitavelmente tal obra apresenta hipóteses e elementos contraditórios. Além disso, apresenta, sobretudo, análises e prognósticos alternativos10.
Consciente disso, Trotsky em A Revolução Traída assinalava que “os acadêmicos não estarão, naturalmente, satisfeitos com essa definição tão ampla [do caráter social da URSS]. Eles gostariam de fórmulas categóricas: sim e sim; não e não. As questões de sociologia seriam muito mais simples se os fenômenos sociais sempre tivessem contornos precisos. Mas nada é mais perigoso que eliminar, em busca de precisão lógica, os elementos que desde já se opõem a nossos esquemas e que, eles mesmos, podem nos fazer abandonar nossas concepções no futuro. Em nossa análise, tememos, acima de tudo, violentar o dinamismo de uma formação social que não tem precedente e não conhece analogias” (grifo nosso). Devemos dedicar muita atenção nesse ponto de vista metodológico, porque às vezes se esquecem que hoje já vimos o “final do filme” dos “Estados operários burocráticos”. Trotsky só pôde assistir aos primeiros minutos. Nós, sim, temos precedentes!
Mas retornemos à análise de Trotsky sobre a URSS. Dado que a classe trabalhadora soviética não só tinha sido destituída de qualquer poder real, mas que também, sob o terror stalinista, submetia-se a uma dominação política e a um regime de trabalho brutais, Trotsky foi forçado a realizar uma reformulação da teoria clássica de Marx (e, por conseguinte, de Lênin). Ele argumenta que, apesar de sua degeneração, o Estado soviético ainda pode ser definido como “operário” desde que conserve “as formas de propriedade criadas pela Revolução de Outubro”; enquanto “não liquidadas, o proletariado continua sendo a classe dominante” (L. Trotsky, “A Natureza de classe do Estado soviético“).
Na verdade, essa mudança radical no “centro de gravidade” da teoria marxista do estado esconde dois problemas (e perigos):
1) tende a uma “petição de princípio”: que a propriedade estatal dos meios de produção (que implicava a ausência de capitalistas privados) fosse por si “operária” (ou que, pelo menos, continuava a dar um caráter proletário do Estado);
2) Porém, esta operação teórica abria também as portas para uma complicação mais profunda e mais complexa. Para o marxismo, as relações de propriedade não constituem a estrutura de uma sociedade (relações de produção), mas são apenas a sua “expressão jurídica“; em outras palavras, as relações de propriedade são na verdade parte da “superestrutura jurídica e política” da sociedade (K. Marx, Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política).
Essa “expressão jurídica” não é uma relação direta, mas dialeticamente mediada através das instituições do Estado, das leis e até mesmo dos “costumes”. No decorrer da história, entre as relações de produção e as relações de propriedade têm lugar todas as variações do desenvolvimento desigual e combinado e suas respectivas mediações.
O Marxismo vulgar, especialmente o de DNA stalinista e/ou economicista, frequentemente dá por resolvido que só existem ou existiram duas situações possíveis em relação aos bens em geral e aos meios de produção em particular: a propriedade absoluta e seu reverso, a não-propriedade também absoluta.
Mas, na verdade, isso tem sido excepcional na história. Só houve nas formações sociais escravistas (Grécia clássica e Roma) e especialmente nas formações capitalistas modernas. No resto, tem prevalecido toda a sorte de combinações, de formas “intermediárias“, complexas e por vezes ambíguas, de posse e usufruto, ou, inclusive, de propriedade “compartilhada” (sobre um mesmo bem, pessoas diferentes têm direitos diferentes; por exemplo, no feudalismo, em uma floresta, o senhor poderia ter direitos de caça exclusivos, e os servos, os de coletar a lenha disposta no solo desde que não realizassem o corte de árvores, etc.). Ademais, estas formas podem estar legisladas explicitamente ou não. Nos períodos de transição, isso normalmente se combina com defasagens importantes – “atrasos” ou “avanços” relativos – entre a estrutura (relações de produção) e sua “expressão jurídica” (relações de propriedade)11.
Trotsky, ao direcionar o foco da definição de “Estado Operário Degenerado” para “as formas de propriedade criadas pela Revolução de Outubro“, estava girando em torno – como referido acima – de uma relação jurídica, ou seja, superestrutural. Isso significa deslocar a uma região de penumbra uma questão fundamental: as relações de produção que compõem a estrutura socioeconômica da União Soviética12.
Isso nos remete ao problema mais amplo e crucial das relações de produção na transição do capitalismo ao socialismo. Considerando que em um estado efetivamente operário impera a democracia socialista e que nele a classe trabalhadora é a única a realmente exercer o poder sem que seja substituída por uma burocracia que busca governar em nome dos trabalhadores, podemos ir agora direto ao ponto: as relações de produção de um estado verdadeiramente operário são essencialmente as mesmas de um “estado operário degenerado”?
Veremos mais adiante que, sobre esta questão crucial, Trotsky não responde de modo muito claro, dando-nos formulações parcialmente contraditórias.
Além disso, naquela época, Trotsky provavelmente estava certo politicamente, mesmo tendo “forçado” desproporcionalmente as determinações clássicas da teoria marxista do Estado.
Como esclareceu mais tarde, “a definição da URSS como um Estado Operário” não é empregada como “uma categoria lógica, ou mesmo ética”, mas “como uma categoria histórica que atingiu as margens de sua própria negação” (grifo nosso)13.
Mas Trotsky não queria cruzar tais limites, por razões políticas compreensíveis. Não queria descartar a possibilidade de que “um evento histórico importante, uma mudança de situação na URSS” poderia levar à “queda da burocracia stalinista”. Ele sabia que este grande evento histórico – a Segunda Guerra Mundial – estava prestes a estourar: era essa prova objetiva da luta de classes o que decidiria em definitivo14. Assim, em A Revolução Traída conclui que, em última análise, “o problema do caráter social da URSS ainda não foi resolvido pela história.”
Todavia, a guerra não terminou com a “queda da burocracia stalinista” de trabalho e com a regeneração operária da URSS. Pelo contrário, foi no pós-guerra que a burocracia atingiu o auge de seu poder geopolítico e de sua influência sobre o movimento operário e sobre a esquerda mundial, graças a ter encabeçado, juntamente com as “democracias ocidentais” a guerra contra o nazi-fascismo. Por outro lado, os trotskistas saíram como minoria marginal que laboriosamente remava contra a corrente.
A guerra mundial teve resultados muito diferentes da alternativa imaginada por Trotsky. Essa alternativa foi colocada em termos absolutos que não vingaram: contra-revolução fascista (com a liquidação da URSS, incluindo sua burocracia) ou revolução operária e socialista, com a consequente regeneração do Estado soviético e a derrubada da burocracia stalinista.
Foi totalmente legítimo Trotsky ter feito essa “aposta na revolução”. Mas os resultados da Segunda Guerra Mundial não foram esses: apresentou-se um “híbrido”, uma combinação não prevista. O Nazi-fascismo não triunfou na Europa, tão pouco a revolução operária e socialista. Surgiram situações revolucionárias (inclusive com elementos de duplo poder) em importantes países europeus, tais como França, Itália e mesmo em algumas regiões da Alemanha. Mas, como sabemos, foram decisivos os pactos entre o imperialismo e a burocracia do Kremlin para contê-los e logo o desarmá-los.
A condição de vencedores do nazi-fascismo permitiu aos stalinistas estabelecer um rígido controle sobre a maioria do movimento operário e de massa europeu (enquanto o resto sucumbiu ao domínio da social-democracia, não menos contra-revolucionária). As tendências instintivas, contudo inorgânicas das massas trabalhadoras para tomar o poder e guiar a revolução socialista colidiu com algo decisivo em situações como essas, os fatores subjetivos: consciência, programa, organização política e social da vanguarda e das massas trabalhadoras.
O fato é que o epicentro das lutas revolucionárias se deslocou da Europa para a periferia (Ásia, África e América Latina). Europa, ou melhor, o proletariado e o movimento operário na Europa, desde 1848, haviam sido o epicentro mundial das revoluções e da luta pelo socialismo em geral. Mas, desde a derrota da revolução espanhola durante a guerra civil de 1936-1939, isso não mais aconteceu até agora. Embora tenha havido lutas importantes, com grande intervenção operária e com repercussão mundial – a revolução dos Conselhos Operários da Hungria (1956), o Maio francês (1968), a Revolução Portuguesa (1974) e outros processos – o “centro de gravidade” revolucionário no mundo se mudou para a periferia, com profundas consequências no que tange aos atores sociais e políticos envolvidos.
Essa “transferência” das revoluções no período seguinte à Segunda Guerra Mundial teve o seu mais importante evento geopolítico na China, ainda que a importância da Revolução Cubana também seja enorme. E não é um problema teórico pequeno o de explicar como uma grande revolução comparável à da Rússia (que também se reivindica “socialista”), tenha chegado a ser o que é hoje: a China é a fábrica (capitalista) de mundo e a “locomotiva” do capitalismo mundial.15
Expropriações e revoluções após a segunda guerra mundial
A expropriação da burguesia nos países da Europa do Leste e a posterior vitória da Revolução Chinesa em 1949 recolocaram aos trotskistas todos os problemas da teoria do Estado.
A maioria se inclinou a “adaptar” a nova situação (realizando uma nova incoerência) ao ponto de vista de Trotsky do início dos anos 30, ao definir o caráter de classe do Estado exclusivamente a partir do primado da propriedade estatal. Só que agora se distinguia entre “Estado Operário Degenerado” (URSS) e os “Novos Estados Operários Deformados” (Leste Europeu, China, etc.), já burocratizados desde o nascimento16. Uma minoria não escolheu soluções teóricas muito superiores, como a do “Coletivismo Burocrático”17 ou a do “Capitalismo de Estado”, o que é também politicamente perigoso, pois tende a igualar o imperialismo ianque e o “capitalismo de Estado” e/ou “imperialismo”soviético”18.
Dez anos depois da China, a Revolução Cubana veio adicionar novas complicações teóricas, já amplamente consideradas no estudo publicado nesta edição19.
A solução do “Estado Operário Deformado”, embora tenha aparecido como uma continuação de Trotsky, na verdade implicava uma generalização abusiva que desfigurava seu raciocínio marxista, isto é, histórico-concreta. Com essa “operação teórica”, “estado operário” deixava de ser uma categoria histórica (como em Trotsky), e transformava-se em uma categoria lógica; ou seja, metafísica20. Ou, nas palavras de Marx, em uma categoria “imortal, imutável e imóvel”, deixando de lado qualquer consideração sobre as relações sociais reais em que se inseria… aquelas que geraram a própria categoria21.
De acordo com a concepção metafísica ou “lógica”, qualquer Estado que expropriasse e/ou possuísse os meios de produção fundamentais passava a ser automaticamente um “Estado operário” mesmo que nenhum trabalhador, menos ainda a classe trabalhadora como tal, tivesse alguma relação com tal fato. Se houvesse desapropriação, instantaneamente o Estado se transformava em “operário”, desconsiderando totalmente o processo de luta de classes que tivera levado a tal ordem; ou seja, deixando de lado os sujeitos sociais e políticos que criavam tal situação, bem como o modo de como a faziam. Nas palavras de Marx, abstraía-se das “reais relações [sociais]”, em que se dava22. Quem expropriava e como se expropriava tornaram-se questões relegadas a último plano, quando não desapareciam completamente.
Às expressões “Estado operário” ou “ditadura do proletariado” foram adicionados alguns adjetivos, como “deformado” ou “burocrático”, como se fossem variações de uma mesma família, algo como as panteras ou os gatos domésticos, que são ambos da mesma família zoológica dos felinos. Porém, no âmbito da sociologia e política, essa operação pode ser ainda mais perigosa que confundir um gato com uma pantera.
A generalização conduziu, então, o conceito de “Estado Operário” mesmo naqueles estados em que a classe trabalhadora tinha pouco a ver com o estado “de carne e osso” (ainda que às vezes este falasse em nome daquela). Ou seja, a classe trabalhadora pouco tinha a ver com o estado concreto, tal como consagrado nas suas instituições (que eram completamente da burocracia).
Estado e regime político, superestrutura e relações de produção
Resulta do que nós estamos explicando que a grande maioria do trotskismo pós-guerra generalizou quase até o absoluto duas hipóteses de Trotsky. Esta foi uma extrapolação, já que essas hipóteses estavam em contradição com outros aspectos de sua análise sobre a terra incógnita23, que foi o primeiro teste de um estado onde o capitalismo tinha sido expropriado. Acontece que, como já assinalamos, Trotsky não queria excluir qualquer variação possível de “uma formação social que não tinha precedentes”.
As duas hipóteses mencionadas estão estreitamente ligadas entre si. 1) o Estado operário, tal como os Estados burgueses, poderia ter regimes políticos completamente diferentes, a saber: regime burocrático ou de democracia operária. Em outras palavras: nas mesmas bases sociais e estruturais podem ser erguidas superestruturas muito diferentes, como no capitalismo. 2) Que algumas classes e/ ou setores sociais poderiam substituir a classe trabalhadora, cumprindo tarefas históricas que corresponderiam ao proletariado.
O objetivismo – isto é, o primado do que se faz a despeito de quem e como se faz – foi acompanhado pelo já mencionado substituísmo. Mas, insistimos, essas hipóteses foram extrapolações do pensamento global de Trotsky, convertidas, pois, em teses, em afirmações axiomáticas.
O raciocínio foi mais ou menos o seguinte: os estados burgueses mostram como o mesmo estado pode ter diversos regimes políticos (monárquicos, bonapartistas, democráticos, fascistas etc.). Eles são regimes muito diferentes (às vezes até mesmo apóiam-se sobre setores distintos das classes exploradoras), mas o caráter de classe do Estado é o mesmo: burguês.
Da mesma forma, um estado operário pode instaurar diferentes regimes políticos. Se se apóia nas camadas burocráticas, será um estado operário burocrático. Se, no entanto, o regime se apóia na classe operária organizada democraticamente, será um estado operário de “democracia socialista” (Mandel) ou “revolucionário” (Moreno).
Além disso, o próprio Trotsky fez observar os antecedentes do “substituísmo” em algumas revoluções burguesas. Um dos exemplos que ele mencionou foi o do regime de Bismarck, que completou a tarefa historicamente progressiva de unificar a Alemanha (que a burguesia tinha sido incapaz de concluir) e que se apoiava nos proprietários de terras prussianos de linhagem feudal. Da mesma forma, a situação da luta de classes no pós-guerra fez com que setores sociais não proletários realizassem tarefas que se acreditavam ser reservadas à classe operária.
Seja com um “exagero excessivo”, tal como o de Isaac Deutscher (que chegou a estender isso para o próprio Stalin); seja com um maior ou menor grau de amplitude, segundo as diferentes tradições do trotskismo; essa concepção “substituísta” tornou-se padrão no pós-guerra. Porém, a trajetória dos supostos “estados operários” e os perigos atuais que se levantam frente à Cuba agora nos força a reconsiderar tudo isso.
Em primeiro lugar, não é possível generalizar a todas as formações econômico-sociais (e menos ainda para aqueles que expropriaram a burguesia) uma característica que é quase exclusiva do capitalismo: a saber, a separação extrema entre estrutura e superestrutura, entre as relações de produção e as de dominação política, entre a economia e o Estado, entre o homem como homo economicus (comprador ou vendedor no mercado da força de trabalho, que determina a divisão fundamental de classes da sociedade) e a ficção dos “cidadãos iguais” na esfera política. Isto dá ao capitalismo, nessa esfera política, um caráter extremamente “plástico” que não tem nem poderia ter outras formações econômico-sociais, tanto pré-capitalistas como pós-capitalistas24.
É uma enorme vantagem de o capitalismo possuir essa plasticidade política, a qual permite que o Estado burguês possa ter como “regime político” desde ditaduras fascistas ou regimes militares como o de Pinochet até regimes ao estilo Chávez, passando pelas formas de “democracia” republicana “normal”, pelas monarquias constitucionais (Grã-Bretanha) ou despóticas (Arábia Saudita), pelos regimes semiteocráticos (Irã) etc. Mas o resto das formações sociais não tem semelhante plasticidade. Por exemplo, no feudalismo clássico seria inconcebível semelhante separação entre as funções superestruturais político-jurídico-militares do senhor feudal e suas funções estruturais, a extração de produto e trabalho excedentes de seus servos25.
Insistimos: é uma característica muito importante e quase única do capitalismo, que só foi compartilhada (porém de forma qualitativamente mais restrita) por algumas formações sociais baseadas na escravidão (cidades da Grécia antiga no seu período clássico e, depois, em Roma).
Isso faz com que os capitalistas possam exercer o poder do Estado muito menos diretamente do que as classes ou camadas dominantes de outras formações sociais: fazem-no pela mediação de um pessoal especializado: as burocracias políticas e militares. Essas são recrutadas principalmente nas ambiguamente chamadas “classes médias”, estendendo-se também a todo o conjunto da sociedade, desde os remanescentes das velhas classes capitalistas (tais como os ridículos monarcas e aristocratas de tantos países europeus) aos dirigentes “proletários” (estilo Lula, por exemplo). Diante das crises, isso permite ao capitalismo não só trocar a “equipe”, mas, ainda mais, mudar de regime. Assim, ascendem e caem governos, mudam os regimes e o capitalismo permanece. A conturbada história de Cuba até 1959 é um dos muitos testemunhos disso.
Pois bem: pouco ou nada disso pode acontecer uma vez expropriados os capitalistas: Estado, regime e economia deixam de ser (relativamente) “autônomos”. Extingue-se essa “externalidade” mútua entre produção e Estado, estrutura e superestrutura.
Como explicou Trotsky, as razões para essa diferença baseiam-se naquilo que permite ao capitalismo reproduzir-se “automaticamente”. Mas se se expropria aos capitalistas os principais meios de produção, a coisa deixa de ser “automática”. Extingue-se o automatismo que garante ao capital sua reprodução e valorização. Alguém deve não só comandar e administrar o funcionamento de produção e da economia em geral, mas também cuidar para que as massas trabalhadoras trabalhem com uma eficiência e produtividade comparáveis com as do capitalismo26.
Que isso seja feito pelo “Estado dos burocratas” (acima e sem qualquer controle ou direito de decisão dos produtores) ou pelo “estado democrático dos trabalhadores armados” não é uma mera diferença no “sistema político”, localizado nas nuvens das superestruturas. Em outras palavras: não é um regime que poderia ser substituído por outro (como no capitalismo), enquanto se mantém mais ou menos as mesmas relações de produção. Pelo contrário, ambas as opções implicam diferenças radicais no tipo de Estado, porque tem a ver, mais profundamente, com o que podemos até chamar de diferentes modos de produção na transição (ou algo que, pelo menos, aponta nesse respeito).
Em “A economia soviética em perigo”, um texto de 1932, Trotsky faz um paralelo interessante entre alguns possíveis modos de produção que se esboçam após a expropriação dos capitalistas.
Por um lado, haveria a planificação dos burocratas que pensam possuir uma “mente universal” a qual lhes permitiria “traçar a priori um plano econômico perfeito e acabado, começando com o número de hectares de trigo e terminando com o último botão dos jalecos” e que do mesmo modo “tão facilmente prescindem da democracia soviética e do controle do mercado”.
Por outro, haveria “uma economia da etapa de transição através da inter-relação desses três elementos: Planejamento estatal o mercado e a democracia soviética” E, desses três “elementos”, Trotsky põe como decisivo a democracia operária e socialista, vez que “a luta entre os distintos interesses como fator fundamental da planificação nos conduz ao terreno da política”.
Assim, a política e a democracia socialista (superestrutura) são partes integrantes e inseparáveis das relações de produção (estrutura) da transição. E isso também se aplica àquela outra forma de produção: aquela que a burocracia comanda: esta também é sobredeterminada pela dominação burocrática, que não pode tolerar a democracia operária, uma vez que, assim sendo, seria impossível apoderar-se de uma parcela significativa do produto excedente.
Isso, por sua vez, não determina meramente dois regimes diferentes (burocrático e revolucionário) do mesmo estado operário, mas, dado o caráter social e não só “político” desses estados, dois tipos diferentes de estado27.
Todavia, devemos dizer algo mais sobre essa questão fundamental das relações de produção na transição do capitalismo ao socialismo. A expropriação da burguesia em um país – seja em vastos territórios como China e Rússia, seja em uma pequena ilha como Cuba – não o emancipa da economia mundial, que permanece capitalista. Ou, dito de outra forma, não o emancipa da lei do valor.
A partir das elaborações de Trotsky – entre elas, a fundamental unidade da economia mundial -, Pierre Naville aprofundou a análise das relações de produção em países em que se deu a expropriação do capitalismo. Isso foi desenvolvido principalmente em relação à URSS, mas em termos gerais também é válido para Cuba.
Naville, desenvolvimento um exemplo mencionado por Marx, comparou essas sociedades com uma cooperativa de trabalho. Nessa não há patrões, mas o nível de desenvolvimento das forças produtivas e o fato de que essa cooperativa existe em escala nacional, nos marcos da economia capitalista mundial, torna-se impossível superar ou “abolir” o trabalho assalariado, e, portanto, a mais-valia. Como forma “transitória” impõe-se, ainda, uma auto-exploração (conceito de Marx) ou uma “exploração mútua” (conforme Naville). Em outras palavras: ainda há mais-valia, ou seja, valor excedente não pago ao trabalhador, mas que não vai para os bolsos de um empregador privado; vai para a cooperativa. A mais-valia é estatizada.
No entanto, o problema se apresenta, como já advertia a Plataforma da Oposição de Esquerda em 1927, quando o excedente estatizado vai parar cada vez mais nas mãos da burocracia. Décadas mais tarde, isto já havia dado um salto qualitativo. O “socialismo” soviético se apresentava, então, como “uma espécie de agrupamento de cooperativas operando sob uma série de leis herdadas do capitalismo e coordenadas pela mão brutal de uma burocracia“28.
Conforme Trotsky apontou, a apropriação do produto excedente pela burocracia não constitui um sistema de exploração “orgânico”, como o capitalismo ou as formações anteriores. Por isso não durou séculos (como o feudalismo ou capitalismo), mas apenas um suspiro, se o medimos em suas proporções históricas. Não houve lugar na história para um “coletivismo burocrático”. Com notável rapidez, descambou de diferentes maneiras. No entanto, é importante compreender, sobretudo para o futuro e para a retomada da luta pelo socialismo, que isso foi efetivamente um sistema de exploração. Embora não tenha sido “orgânico”, foi, no entanto, estrutural; não foi uma das muitas formas de regime político que pode tomar um estado operário.
Para deixar isso mais claro, tomamos uma analogia feita por Nahuel Moreno sobre a transição. Moreno dizia que tudo se passa como em uma estrada de ferro. Se o trem da revolução fosse conduzido por direções burocráticas e/ou pequeno-burguesa, então, pararia na estação “expropriação da burguesia” e não seguia avançando na transição para o socialismo.
Na verdade, as coisas eram mais complicadas. Jamais as ferrovias tiveram uma só via: haviam bifurcações, desvios e “becos sem saída”; é como dizer que não chegam a lugar algum. Podemos dizer que à frente do trem da revolução existem duas vias. Se quem o dirige é uma burocracia, tomará um beco sem saída… e retornará ao capitalismo. Se se impõe o programa da democracia operária e socialista dos trabalhadores, sendo a direção realmente a classe operária autodeterminada, o trem tomará outra direção: o caminho de transição para o socialismo.
Assim, as burocracias organizadas em estados “todo-poderosos”, não pararam o trem após a expropriação, mas seguiram marchando por outras vias. Inicialmente, nem a burocracia stalinista nem a maoísta queriam a restauração capitalista, mas seguiram tentando fazer “orgânico” e historicamente duradouro o sistema de exploração “inorgânico”.
Por esse caminho se estabeleceram “estados burocráticos” (ou “socialismos de Estado”, como chamava Pierre Naville), que finalmente se demonstraram sem grandes perspectivas históricas. Ou seja, eles falharam miseravelmente. Entre outros motivos, porque eram economias nacionais nos marcos de uma economia mundial capitalista, e porque o sistema burocrático era incapaz de um desenvolvimento sustentável das forças produtivas. Após os fracassos, as burocracias se direcionaram para a restauração, embora sob formas distintas. Cuba, mais tardiamente, pelas razões já apontadas, está diante da mesma encruzilhada.
É impossível abstrair o também determinante elemento político (democracia operária e socialista ou ditadura burocrática) desses fracassos econômicos, que tiveram como consequência não só a perda da maior conquista revolucionária da história (a expropriação do capitalismo em um terço da humanidade), mas algo ainda pior: uma grave crise na consciência dos trabalhadores sobre a possibilidade de uma alternativa socialista ao capitalismo.
Classes, Burocracia e Substituísmo
Isso nos remete a uma reflexão final sobre o “substituísmo”, que, após os desastres do século XX, alguns querem colocar de volta nos altares, acendendo velas não só para Chávez, mas também, agora, para Raul Castro.
Trotsky, de fato, colocou-se uma questão, tomando o exemplo dos junkers prussianos e da Restauração Meiji (1868) que, a partir “de cima”, rapidamente foi realizada a transição do Japão feudal para o capitalismo imperialista. Tanto os junkers prussianos, cuja liderança era Bismarck, como os setores da aristocracia japonesa liderada pelo Imperador Meiji eram estratos sociais de origem feudal que cumpriram tarefas burguesas historicamente progressistas (a unificação da Alemanha, o desenvolvimento do capitalismo no Japão, etc.).
Fazendo uma analogia hipotética, Trotsky se perguntava até que ponto a burocracia soviética – um estrato pequeno-burguês – poderia desempenhar um papel temporariamente “substitutivo”. Ou seja, cumprir limitada e contraditoriamente tarefas do proletariado e do socialismo. Mas, ao mesmo tempo, levantava hipóteses opostas (que geralmente não são lembradas), como por exemplo que o domínio da burocracia já significaria, mais cedo ou mais tarde, a restauração do capitalismo “a frio”.
Mas nós, como mencionado acima, ao contrário de Trotsky, tivemos a oportunidade de ver o final do filme: nenhuma burocracia desempenhou um papel como o de Bismarck, o do imperador Meiji nem qualquer coisa parecida. Deu-se, porém, a outra hipótese de Trotsky: a de que os burocratas conduziriam à restauração capitalista. Hoje já temos essa comprovação, da qual careceu Trotsky em vida. E não há fato ou motivo algum para sugerir que a burocracia cubana será uma exceção.
Este resultado se deve a uma qualidade também exclusiva do capitalismo: a vasta capacidade, nacional e mundialmente, de assimilar outras classes e estratos pré-capitalistas de exploração e/ou privilegiadas, “aburguesá-las” e as colocar a seu serviço. Nem a classe trabalhadora nem um Estado proletário teriam tal capacidade. O capitalismo tem aburguesado líderes tribais, reis, imperadores, marajás, sheiks, junkers, samurais e tudo quanto é explorador e/ou privilegiado pré-capitalistas que já tenham existido no planeta. E, infelizmente, por outro lado, tem assimilado e domesticado legiões de burocratas obreiros (incluindo muitos que foram inicialmente lutadores legítimos), líderes guerrilheiros e dirigentes de movimentos sociais camponeses, indígenas e assim por diante. Também tem devorado duas gerações históricas de partidos originariamente operários, os socialistas, oriundos da Segunda Internacional, e os comunistas, da Terceira.
Finalmente, repetimos que não se trata aqui de debates acadêmicos (como seria com Deutscher se estivesse vivo), nem de negar, em abstrato, a possibilidade de que setores sociais e políticos não proletários, em circunstâncias especialíssimas, cumpram limitadamente tarefas históricas que corresponderiam ao proletariado, como foi o caso da Revolução Cubana.
O problema concreto é outro: depois de um século de imensas revoluções cujo saldo foi o fracasso total e irremediável dos “substitutos” da classe trabalhadora, o “substituísmo” está de novo erguido como programa e política de setores do marxismo revolucionário e da vanguarda.
Diante desta situação concreta – que atravessa o marxismo revolucionário na América Latina e no resto do mundo – acreditamos que a nossa posição, de fato, deve ser contundente: nenhum “substituísmo” vale a pena! Se não conseguirmos reerguer a luta da classe trabalhadora e do movimento operário, ninguém virá para sucedê-los!
1 Deve-se notar que, já nos tempos de Marx e Engels, à maltratada palavra “socialismo” se pretendia dar qualquer significado. Por isso, Marx e Engels no Manifesto Comunista se vêem obrigados a esclarecer as variedades de “socialismos” fraudulentos então em voga. Para tal intento, empregaram antes de tudo um critério de classe; ou seja, de sujeitos sociais que se expressam nesses supostos “socialismos”. No século XX, essa interessada nebulosidade do conceito de socialismo atingiu um grau escandaloso. Assim, chamaram-se “socialistas” a maioria dos governos e partidos das ex-colônias afro-asiáticas (tais como os de Nasser no Egito, Assad na Síria e até Sadam Hussein no Iraque) e partidos como o PS da França ou o PSOE da Espanha.
2É obvio que nesta transição houve crises políticas e enfrentamentos que em algumas ocasiões fizeram correr sangue. Entretanto, esses fatos não só não foram a regra como não tiveram relação com uma defesa da propriedade supostamente “socialista” nem com uma negação à restauração.
3Oú va l’URSS de Gorbatchev?, París, La Bréche, 1989, p. 20.. [N.T. Hara-kiri é o termo popular para o ritual de suicídio dos samurais.]
4 Destacamos aqueles de queda (ou a mudança) dos regimes stalinistas da ex-URSS e do Leste porque o que aconteceu com a burocracia “operária” teve muitas variantes. Mas, em geral, a burocracia, como tal, não foi liquidada (mesmo em países em que houve excepcionalmente revoltas violentas, como na Romênia, ou onde havia grandes movimentos de políticos de oposição em condições de sucedê-la, como na Polônia). Em maior ou menor medida, dependendo do caso, a burocracia se “renovou” no novo regime, e, simultaneamente, setores dela se tornaram empresários. O processo na Rússia é particularmente interessante. Depois do desastre do neoliberalismo “puro” de Yeltsin e seu bando de “oligarcas”, que culminou com a falência financeira de 1998, conquista a hegemonia o núcleo central da burocracia sobrevivente, principalmente a ex-KGB e as Forças Armadas, que, aliás, aparecem representando e mediando – com um regime bonapartista forte- os interesses do conjunto da nova burguesia russa e do estado russo em seu confronto econômico e geopolítico com o EUA e a União Européia. Assim se foi dando uma luta, com episódios sangrentos, entre Putin e alguns dos “oligarcas” que estavam muito ligados a capitais ocidentais, e que abririam caminho para transformar a Rússia em uma semicolônia do Ocidente.
5 No caso de Cuba, deve-se chamar a atenção para este grave problema que nem se colocam aqueles que acreditam que o capitalismo já foi restaurado na ilha, como é o caso do PSTU-LIT. Em 2000 os companheiros acreditavam que a restauração já estava concluída ou em vias de se concluir. No entanto, desde então, no conjunto do que se tem escrito para prová-la, nunca lhes passa pela cabeça tentar explicar como se pôde passar gradual e evolutivamente da ditadura do proletariado (estado operário) à ditadura da burguesia (o Estado burguês).
6 Demarquemos desde já que isso nos leva a diferenças radicais entre o curso histórico da União Soviética e os países onde se expropriou a burguesia no pós-guerra. A revolução de Outubro de 1917 originou um estado encarnado do poder dos soviétes. Por isso, foi necessária a contra-revolução mais sangrenta do século XX – mais até que a de Hitler na Alemanha – nas décadas de 20 e 30, para estabelecer e consolidar o poder da burocracia. Isso incluiu o extermínio em massa da vanguarda operária e de quase todos os bolcheviques que haviam realizado a Revolução de Outubro. Não houve processo semelhante no período posterior a segunda guerra mundial. As convulsões sangrentas pelas quais passou a China foram de natureza muito distinta. Seus centros foram essencialmente as lutas interburocráticas, alimentadas pelas contradições do “socialismo em um só país” consideradas revolucionárias pelos disparates voluntaristas de Mao. Os episódios nos quais apareceu a classe trabalhadora giraram em torno desse eixo.
7 Engels, El origen de la familia, la propiedad privada y el Estado, OEME, tomo VII, Cartago, Buenos Aires, 1973.
8 Entre outros aspectos, no sentido de que a burocracia soviética havia deixado de ser parte da classe trabalhadora, questão na qual Trotsky oscila bastante.
9 Declaração em vista do XVI Congresso do PC, 12/4/1930, Cahiers Leon Trotsky, nº 6, Paris, 1980, disponível em edição espanhola Antídoto de A Revolução Traída. Inicialmente, a carta tinha sido publicada no Boletim da Oposição, a qual Trotsky editava no exílio.
10 Deve-se levar em conta essa advertência porque também tem sido frequente no movimento trotskista a operação de “cortar” esse ou aquele aspecto das análises e definições de Trotsky, absolutizando-os e deixando de lado outros textos que demarcavam tendências opostas. Por exemplo, o mandelismo tomando trechos em que Trotsky dizia que, inicialmente, a burocracia desempenhava um papel contraditório no Estado soviético, retirou tais trechos de todo o contexto e os reformulou como “natureza dual da burocracia”.
11 Dois exemplos disto: 1) Uma das medidas fundamentais dos colonizadores europeus na Ásia e na África (por exemplo, os ingleses na Índia) foi a imposição de uma legislação que consagrava regras de propriedade absoluta do capitalismo. Esta mudança, superestrutural, jurídica, foi uma arma poderosa para liquidar a partir “de cima” formas de propriedade e relações estruturais de pré-capitalistas de produção, sobretudo no campo (o que implicou a ruína e ao mesmo tempo a desapropriação em massa do campesinato); 2) Um exemplo inverso: em 2007, o parlamento da China aprovou uma lei que consagrara o pleno direito à propriedade privada capitalista (ou seja, dos meios de produção e de troca). Por óbvio, seria ridículo afirmar a esta data que teria chegado ao fim o “estado dos trabalhadores” chinês, como deveríamos fazer se nos orientássemos somente pelas relações jurídicas de propriedade para definir o caráter de classe do Estado. Essa lei não foi o começo, mas o fim de um longo processo de décadas de mudanças estruturais (ou seja, de transformações nas relações de produção) e superestruturais, que inicialmente operaram de fato, adiantando-se a sua “legalização” final. Nem as multinacionais nem a nova burguesia chinesa, originada principalmente da burocracia, esperaram esse dia para começar a explorar o trabalho e acumular capital. Mas, ao mesmo tempo, a demanda por “segurança jurídica”, no intuito de adequar a lei à realidade, já era um forte clamor de todos os capitalistas, chineses e estrangeiros.
12 Isto é, deslocou-se o centro do problema, apontado por Marx como “a forma específica na qual o trabalho excedente não pago é extraído dos produtores imediatos”, o que “determina a relação de dependência entre senhores e não-senhores, tal como se depreende da própria produção e que por sua vez retroage sobre ela, e que constitui o segredo “íntimo, a base oculta de todo o edifício social, e, portanto, também a forma política de que se reveste a relação de soberania e dependência; em uma palavra, de toda forma específica do Estado”.
13 “Cuestiones del trabajo ruso“, carta de 17/2/1939, Oeuvres, tomo XX, París, INLT, 1980.
14 As definições de Rakovsky e Trotsky são diferentes, mas não absolutamente contrárias. Ambas são categorias dialéticas, isto é, ” histórico-temporais“, como disse Marx. Tanto Rakovsky como Trotsky coincidem em assinalar um processo contra-revolucionário que ainda não tinha sido totalmente consumado: “estamos caminhando para um estado burocrático com restos proletários comunistas”, afirmou Rakovsky; o estado operário “é uma categoria histórica que atingiu o limite de sua própria negação“, disse Trotsky. Mas enquanto Rakovsky põe a ênfase no já visível ponto de chegada, Trotsky, no entanto, ressalta o ponto de partida: uma grande revolução dos trabalhadores, da qual só restava a propriedade estatizada.
15 A esse “mistério” que é totalmente ignorado por muitos, dedicamos longos trabalhos nas revistas Socialismo ou Barbárie nºs 17,18, 19 e 21, com textos de Roberto Sáenz.
16Uma corrente minoritária então encabeçada por Tony Cliff desenvolveu a teoria do “capitalismo de Estado”, que apresentou problemas teórico-políticos distintos, mas não menos graves do que a maioria que definia esses Estados como operários com base exclusivamente na estatização dos meios de produção.
17Sabe-se que a corrente “Coletivista Burocrática” teve um personagem de importância, Max Schachtman, o qual deu origem a posições de direita. Uma minoria permaneceu no âmbito do socialismo revolucionário, consubstanciada em intelectuais como Hal Draper.
18Por óbvio, tinha de se defender incondicionalmente a URSS contra qualquer ataque do imperialismo, como hoje tem de se fazer com Cuba contra os EUA. Mas esta defesa incondicional não depende de nós os considerarmos “Estados Operários”, mas de que são atacados pelo imperialismo. Deste modo, é também um dever fundamental defender tudo o que resta de pé das conquistas das revoluções do século XX, como a propriedade nacionalizada, melhorias na saúde, educação, condições de trabalho, etc..
19 Referência do autor à edição em que se publicou originariamente esse artigo.
20 A reviravolta de Trotsky em relação à teoria do Estado, deslocando o centro da questão das relações de produção às formas de propriedade – abrira a porta (ou pelo menos a janela) a esse erro posterior. No entanto, globalmente o pensamento de Trotsky foi profundamente dialético. Expressou uma reflexão que poderíamos parafrasear do seguinte modo: “A revolução trabalhadora e socialista, que começou na Rússia em 1917, não se espalhou para a Alemanha e outros países avançados da Europa, restando isolada em um país muito atrasado. Nessas condições, uma burocracia brutal pôde se apropriar do poder e ir aniquilando as conquistas de Outubro. Apesar da burocracia, continuou a subsistir todavia uma conquista muito importante: a propriedade estatizada. Assim, ainda que o ‘estado operário’ esteja claramente “à beira de sua negação“, não devemos dar tudo por perdido: estamos no limiar de uma guerra mundial, um acontecimento histórico de enorme importância, que pode levar a uma alteração da situação na URSS e ao colapso da burocracia stalinista“. Trotsky pode ter errado em seu prognóstico, mas isso não foi metodologicamente incorreto: tinha relação com o decorrer degenerativo seguido por uma revolução operária e socialista. Sua (questionável) “simplificação” da definição social da URSS se inseria no entendimento correto do momento da luta de classes.
21 Isso nos remete a um problema teórico que é a base de constituição do marxismo. Com efeito, Marx lançou as bases do “materialismo histórico” polemizando contra a utilização das categorias de forma “lógica”, isto é, metafísica (assim como corretamente criticou Trotsky no que tange à abordagem da discussão da URSS). A polêmica de Marx com Proudhon, num plano mais teórico, teve esse ponto como fundamental. Assim, em sua carta a Annenkov (28/121/1846), Marx afirma contra Proudhon o princípio de que as categorias “são apenas expressões abstratas dessas relações [sociais] existentes e só permanecem verdadeiras enquanto essas relações sociais existirem (…) Portanto, estas categorias não são mais eternas que as relações que elas expressam. Elas são produtos históricos e transitórios”. Marx, finalmente, criticando aqueles que tomavam “a abstração, a categoria tomada em si mesma, a despeito dos homens e de suas atividades materiais”. Dessa maneira, a categoria pode se tornar “imortal, imutável e imóvel” (ênfase de Marx).
22 Como veremos, este seria também o ponto de partida da confusão quando, após a Segunda Guerra Mundial, houve uma onda de estatizações, não só na China e na Europa Oriental, mas também em muitos países africanos e asiáticos. Uma complicação adicional foi que muitos desses governos que emergiram nas ex-colônias européias, recém-independentes, reivindicavam-se “socialistas”. Então, muitos trotskistas, como o mandelista Livio Maitán, indagavam-se se o Egito não tinha se tornado, “a frio”, um “estado operário”, vez que Nasser, além de se proclamar socialista, havia estatizado quase toda a economia. Outros, ainda mais delirantes que Maitán, “descobriram” que, além dos reconhecidos “estados operários” da China, os da Europa Oriental, de Cuba, e assim por diante, havia outra dúzia; como o da Etiópia sob o regime militar terrorista de Mengistu Haile Mariam. Lembremos, finalmente, de como o mandelismo declarou o “Estado Operário” nicaragüense governado por Daniel Ortega.
23 Termo em latim para “terra desconhecida” [N.T.].
24 Sobre as demais formações econômico-sociais, valem as seguintes observações de Perry Anderson: “Todos os modos de produção de sociedades pré-capitalistas extraem o mais-trabalho dos produtores imediatos mediante a coerção extra-econômica (o que implica, principalmente, mas não exclusivamente, alguma forma de poder estatal). Mas no capitalismo, continua Anderson, “os meios pelos quais se extrai excedente dos produtores diretos são puramente econômicos em sua forma: o contrato de trabalho, a troca igual entre agentes livres, que reproduz a cada hora e a cada dia, a desigualdade e a opressão. Os meios de produção anteriores operam através de sanções extra-econômicas: de parentesco, costumeiras, religiosas, jurídicas ou políticas… portanto, é impossível interpretar essas sanções separadas das relações econômicas. “As ‘superestruturas’ de parentesco, a religião, a família, o direito ou o Estado entram necessariamente na estrutura constitutiva do modo de produção das formações sociais pré-capitalistas” (P. Anderson, El estado absolutista, grifo nosso). Entendemos que algo semelhante ocorre após a expropriação dos capitalistas.
25Insistimos: é uma característica muito importante e quase única do capitalismo, que só foi compartilhada (porém de forma qualitativamente mais restrita) por algumas formações sociais baseadas na escravidão (cidades da Grécia antiga no seu período clássico e, depois, em Roma).
26 O que não significa, é claro, que a lei do valor deixa de vigorar, nem que se possa imediatamente “abolir” o trabalho assalariado, especialmente em economias nacionais atrasadas, como foi o caso de Cuba e de outros países onde o capitalismo foi expropriado no século XX.
27Será que isso exclui, em princípio, as possíveis diferenças de regime na transição? De maneira nenhuma! Mas essas diferenças se movem no interior de um espectro qualitativamente menos amplo que o das formações capitalistas. Por exemplo, o regime político de um futuro Estado Operário boliviano não poderia deixar de levar em conta o problema dos povos indígenas. Da mesma maneira, na América Central, o regime deveria assumir a forma de uma federação socialista, não um estado unitário. Assim sendo, a necessidade política da classe trabalhadora para estabelecer sua hegemonia sobre todos os explorados e oprimidos irá certamente conduzir a certas concessões institucionais, de acordo com a realidade social de cada país ou região. Isso também se aplica aos estados burocráticos: o regime político na URSS não foi exatamente o mesmo nos tempos de Stalin, na época de Brejnev ou ainda no período posterior de Gorbachev. Mas, da mesma forma, essas variantes se deram no interior de margens qualitativamente mais estreitas que as do capitalismo.
28Pierre Naville, Le nouveau Leviathan, tomo 2, volume 1, capítulo 3, París, Antrophos, 1970. Não é demais recordar que Moreno muito estimava a obra de Naville.