Embora tenhamos a compreensão da intensificação do aparato repressivo no governo Bolsonaro, está em aberto no movimento de esquerda no Brasil o debate sobre o policial ser ou não parte da classe trabalhadora, já que é um assalariado. Ainda não fechamos posição pois, essa polêmica no movimento também se reflete internamente e achamos prematuro fechá-la “artificialmente”. Vamos seguir fazendo o debate e tomando posição naquilo que amadurecermos sobre o tema.
De onde partir?
A Polícia Militar é uma força estatal da repressão. Dividida por especialização mas, toda dedicada fundamentalmente à repressão e controle sobre a classe trabalhadora. Obviamente que existe o controle e o combate sobre a criminalidade em geral que é a forma de se legitimar perante a população, mas também nesse aspecto o alvo é a população pobre, pois ricos criminosos (e não criminosos) contam com a proteção do Estado como demonstra a forma diferenciada de tratamento entre periferia e área nobre.
A repressão direta é uma função da Polícia Militar (Constituição Federal: Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública) que incorporou – com base a uma interpretação jurídica ampla da dita “defesa da ordem” – funções de investigação e monitoramento, obviamente incluindo o movimento social. A Polícia Civil, chamada de Polícia Judiciária, cumpre funções investigativas e de espionagem (DEOPS paulista, por exemplo, estava sob sua responsabilidade). E a Polícia Federal, força mais especializada – com maiores investimentos do Estado e com controle mais amplo do aparato repressivo – atua em âmbito nacional e envolve o Estado Nacional (juridicamente denominado União).
“É necessário, portanto, para uma finalidade prática, estudar bem o principal instrumento de toda reação e de toda repressão: essa máquina de estrangular revoltas chamada polícia”, Victor Serge.
As Forças Armadas, em que pese juridicamente ter como função principal a “defesa da pátria”, também são parte do aparato repressivo do Estado contra a classe trabalhadora brasileira. Na repressão para defender “a ordem pública” (leia-se rebelião da classe trabalhadora contra a sua condição de vida) têm forte atuação política nos grandes assuntos nacionais e com o serviço de inteligência da Ditadura Militar, ainda ativo no monitoramento dos movimentos sociais.
O alinhamento das Polícias estaduais e a subordinação direta das Forças Armadas ao governo Bolsonaro escancaram um total alinhamento político-ideológico, ou seja, de influência das ideias reacionárias no interior dessas instituições, não sendo apenas algo conjuntural. Depois da derrota de setores nacionalistas das Forças Armadas com o golpe militar, o reacionarismo se tornou hegemônico.
Portanto, a função das Polícias e das Forças Armadas no Estado burguês é de repressão e ataque à classe trabalhadora. São estruturas disciplinadas e verticalizadas, sem espaço para democratização. Os processos seletivos de Policias Militares são técnicos e, sobretudo, políticos e ideológicos. Os critérios subjetivos (entrevista, etc.) e de conduta social existem para excluir “potenciais problemas” políticos. Um jovem com participação no movimento social dificilmente será aprovado nesses concursos. O controle para evitar pressões internas leva a contratar quem já tem um perfil político e ideológico “propício”.
Estratégia de destruição do aparato repressivo do Estado
Outra questão importante a ser destacada é que o referencial para o debate sobre Polícia deve ser o da luta revolucionária, incluindo as táticas políticas para desarticulação de sua base e principalmente a questão estratégica de enfrentamento militar contra o Estado burguês. Esse enfrentamento é realizado por essas forças militares (e com suporte de milícias), pois a burguesia não pega em armas e as “terceiriza” para as polícias e Forças Armadas.
Assim, luta contra as forças repressivas têm aspecto democrático, de garantia das liberdades democráticas e que respeitem a legalidade (forças de repressão enfrentam e extrapolam constantemente a legalidade), mas a luta central deve apontar: de um lado para a destruição desse aparato repressivo e de outro para a construção de formas de organização operária-popular que cumpram a função de segurança do povo e não de reprimi-lo.
As reivindicações democráticas são em benefício da classe trabalhadora e do movimento social, portanto, se chocam contra a instituição Polícia e contra os policiais que são os executores, ou seja, são bandeiras políticas de exigências, de fora para dentro. Entre esses direitos estão o direito de manifestação sem interferência das polícias, o respeito aos direitos humanos (exigência de que na sua formação inclua disciplinas de garantias legais, etc.), o respeito ao devido processo legal, etc. Na luta por reivindicações democráticas não há espaço ou ilusão de que as forças repressivas são controláveis pela sociedade, pois a sua natureza é ser uma força externa à sociedade e que opõe a qualquer movimento democrático. São instituições que não podem ser reformadas, devem ser destruídas. Essa é uma tarefa cabe à classe trabalhadora em luta.
Do ponto de vista estratégico cabe aos revolucionários as táticas para corroerem a base das forças policiais, procurando romper a unidade e a disciplina militar, elementos fundamentais para ampliar a força da Revolução. É preciso que os policiais compreendam a importância de romper com a ideologia burguesa para que a classe trabalhadora de conjunto ganhe uma vida digna e a necessidade de se somarem à Revolução. Enquanto estiverem combatendo sob ordens dos oficiais da burguesia e contra luta da classe trabalhadora serão considerados inimigos da Revolução.
Policias Militares servem de base para as milícias bolsonaristas?
Desde o ascenso da direita no Brasil, as policias (sobretudo soldados e oficiais das Militares) constituem uma das bases mais fiéis do bolsonarismo.
O discurso de Bolsonaro legitima uma “Polícia livre para matar” (excludente de ilicitude, posse de arma, apoio às milícias, à tortura, etc.) e se aproxima da prática cotidiana das Militares contra o povo brasileiro – como assassinatos nas periferias principalmente contra jovens negros, repressão aos movimentos sociais, relação com o crime organizado e milícias – o que formam a base política e ideológica “dessa união”. Em comum têm a ampla adesão às ideias de extrema-direita que ganharam força nos últimos anos.
Por serem uma força militar nacional, com mais de 250 mil policiais, com presença cotidiana em todos os espaços territoriais do país além do poderio militar, conseguem impor o terror e o medo contra a população trabalhadora. Como nenhuma outra força policial: conhecem o território, a mobilidade nos bairros, o movimento das pessoas, o contato direto do crime e das milícias, etc. Tudo isso torna essa força a mais perigosa de todas. E se não é a maior ameaça à classe trabalhadora, é uma das grandes. Por isso, Bolsonaro tem políticas muito específicas para esse setor.
Outro elemento importante desse problema é o fato de as Polícias Militares serem, na prática, uma força paralela aos governos dos estados. O motim da PM, no Ceará, é a demonstração mais evidente de como a maioria dos policiais militares se alinham ao bolsonarismo, em muitos casos estão dispostos ao enfrentamento e contam com o apoio de Bolsonaro. O apoio da extrema-direita aos motins e a pauta de Projetos de Lei formalizando juridicamente a autonomia das Polícias Militares (desde a administrativa até a funcional) são parte dessa política.
Sem controle formal, ficam ainda mais livres para agir. Mas, com esse setor sob comando aumenta o poder de barganha política e até mesmo de ações mobilizadoras como, por exemplo, o questionamento do resultado eleitoral.
Importante destacar que as ações da PM não ocorrem à revelia de governadores – políticas de encarceramento em massa, de guerra às drogas e de violência policial são de Estado – e contam com seus apoios. A questão principal aqui é a disputa entre os blocos da burguesia e, também por isso, os governadores não abrem mão desse controle.
Contradições salarias e lutas não os aproximam da classe trabalhadora
O processo de desmonte do Estado e o controle de finanças pelo capital (dívida pública, exonerações, etc.) têm como uma das consequências o arrocho salarial contra o funcionalismo público. As Reformas da Previdência, a Administrativa, o congelamento salarial, etc. são produtos da aplicação de políticas neoliberais.
Esses ajustes também atingem Policiais “sem patente” e de “baixa patente” (vencimento varia muito de estado para estado) que, diante de condições atuais, os governos alegam não terem como atender demandas salariais. Assim, vêm contradições econômicas e que motivam mobilizações de Policiais. Umas das formas utilizadas para amenizar essas contradições é pagando salários maiores para os oficiais de “altas patentes” imporem o controle. A Reforma da Previdência, para as Forças Armadas, seguiu esse padrão e os generais tiveram mais de 100% de aumento.
Os motins e rebeliões (termo mais adequado do que greve) de policiais que ocorreram no país até hoje, mesmo com cunho econômico, não podem ser encaradas como mobilizações da classe trabalhadora. São: 1) reivindicações corporativas deliberadamente desvinculadas de reivindicações dos demais servidores públicos; 2) não questionam a política econômica mais geral e buscam melhores condições “para a tropa”; 3) também contêm reivindicações de fortalecimento da força policial para melhor “enfrentar o perigo”, que é o movimento social.
Para ilustrar, destacamos a pauta de reivindicação de Policiais Militares da Bahia em 2019 (“solução para os problemas do RH, reforma do estatuto, código de ética, isenção de ICMS na compra de armas de fogo por servidores da segurança pública e regulamentação da periculosidade, cuja legislação foi aprovada há 18 anos, mas ainda não foi implementada” – G1.com) e o motim de Policiais Militares do Ceará em 2020, apoiado por Bolsonaro e com lideranças bolsonaristas.
Outro ponto importante desse debate é a dimensão política desses movimentos. Economicamente há semelhanças quanto ao assalariamento. No entanto, mesmo sob esse aspecto, é preciso cuidado metodológico pois, juízes, generais, delegados, etc. são assalariados e essa condição não os colocam como aliados da classe trabalhadora.
Como indicamos, a Revolução vai depender de fissuras no poder militar burguês, mas, as condições objetivas (incluindo os elementos subjetivos) atuais ainda estão longe de possibilitar essa mudança.
Apoiar ou não os Movimentos de Policiais?
Ao consideramos a Polícia como uma instituição contrarrevolucionária e inimiga da classe trabalhadora, os revolucionários devem encontrar formas de enfraquecê-la e torná-la inoperante. Esse é o horizonte e deve ser critério para definirmos apoio ou não aos movimentos de Policiais.
Enquanto esses movimentos se restringirem (à pauta de aumento salarial, reivindicações para fortalecimento da Polícia, para defesa de impunidade às ilegalidades cometidas, reivindicação de cunho conservador ou reacionário, etc.) e não reivindicarem a pauta da classe trabalhadora de conjunto (por exemplo, greve contra a Reforma Administrativa) não apoiaremos os movimentos das polícias.
Não faz sentido o movimento de esquerda chamar apoio a uma mobilização desse setor e, no dia seguinte, marchar nas ruas porque mais um jovem negro foi assassinado numa das periferias do país. Essa é a política que responde a realidade.
Como marxistas, é necessário acompanhar o desenvolvimento da luta de classes. Não se pode descartar mudanças na realidade de aproximação desses movimentos de policias aos movimentos com caráter de esquerda, ainda que improvável, essa situação que exigiria uma política diferente. No entanto, a tendência é termos de enfrentar ações e posicionamento de policiais, principalmente militares, pela direita e de proximidade com o governo Bolsonaro.
Essas são razões da necessidade de ampliarmos os elementos de análise, de ultrapassarmos o critério econômico e considerarmos os elementos políticos e ideológicos nesse debate.
Não acabou, tem que acabar: Eu quero o fim da Polícia!
Por fim, há mais uma questão importante que é a defesa de fim da Polícia e de todo o aparato repressivo. A desarticulação do aparato repressivo do Estado é uma condição para qualquer avanço democrático.
É uma luta que anda junto com o desenvolvimento da luta e consciência da classe trabalhadora, pois é uma luta que precisa estar combinada com a construção de formas de organização de explorados/as para construir o poder “de baixo”, sem a legitimação e a função social do aparato policial que mantêm sociedade com a propriedade privada dos meios de produção (considerada como um “deus”).
Nesse sentido, apoiamos a juventude que grita nas ruas pelo fim da Polícia Militar e chamamos o conjunto da classe trabalhadora para essa batalha.