Em 30 de agosto último se cumpriria o Acordo – assinado em 29 de fevereiro de 2020, em Doha no Catar – entre Estados Unidos e Talibã com o propósito de restabelecer a paz no território afegão após 20 anos de ocupação militar estadunidense.
Porém, no dia 15, duas semanas antes, o Talibã tomou a capital do Afeganistão, Cabul, o que levou Ashraf Ghani, presidente afegão, a fugir pelo Tadjiquistão. O vice Amrullah Saleh, ex-informante da CIA, integrou o Diretório Nacional de Segurança, montou uma rede de espiões e chegou a se declarar presidente interino, mas foi derrotado.
O que é Talibã
No fim dos anos 80, as madraças (escolas religiosas no Paquistão, patrocinadas por sauditas que se opunham à ocupação soviética no Afeganistão) deram origem às milícias do Talibã. A maioria dos estudantes era da numerosa etnia sunita pashtun, seguidora de um código de conduta e honra rígido, que unificava todas as suas quatro confederações tribais.
O Talibã é, portanto, um movimento fundamentalista do ramo sunita que prega uma dura interpretação da lei muçulmana (Sharia) e do Alcorão. Foi no movimento mujahid, de combate ao Socialismo, que deu origem às milícias do Talibã. Os mujahedin receberam equipamentos e treinamento dos Estados Unidos sob o pretexto de expulsar as forças estrangeiras, no caso, soviéticas.
No recente retorno do Talibã ao poder, o enfrentamento ocorreu por parte daqueles que defendem o regime soviético. Desde agosto, ocorrem disputas entre os pashtuns e os panjshiris (combatentes do Vale de Panjshir, norte de Cabul). Os combatentes da Frente Nacional de Resistência enfrentaram com armas insuficientes o arsenal Talibã. Foi a primeira derrota da província. Durante a vigência do governo dito socialista na URSS e a intervenção soviética no país (1978 a 1989), as milícias do Vale do Panjshir contavam com o apoio do Ocidente. A região resistiu também ao primeiro governo Talibã (1996-2001).
Talibã: desmonte da Revolução no Afeganistão
Em abril de 1978, o Afeganistão vivenciou a tomada do poder pelos comunistas durante a Revolução de Saur. Era um país agrário, de características compatíveis com o feudalismo pois, o poder era exercido pelos proprietários locais.
Os revolucionários se dividiam em dois grupos. Houve uma conjuntura difícil, de fome, após o golpe de oficiais que derrubou o primeiro-ministro que contava com apoio soviético, mas, mandava matar comunistas. O grupo Parcham (Bandeira) era composto por militantes de origem urbana e defendiam aliança com todas as forças progressistas nacionais. Queriam moderar o processo e tinham a simpatia da KGB. O Khalk (Povo), cujos militantes vinham de famílias rurais, pashtuns em sua maioria, queria a continuidade da reforma agrária e a manutenção da suspensão de pagamento de dote à família da noiva. Ou seja, almejava mudanças mais profundas.
Após uma divisão no grupo Khalk a União Soviética invadiu o país, em 24 de dezembro de 1979. Como fez com outros processos revolucionários no mundo, o stalinismo interveio e procurou congelar o que acontecia no Afeganistão. Construir um novo ser humano só seria possível com a intensificação do processo revolucionário, especialmente no que diz respeito à condição da mulher e ao uso da terra, questões em que a sociedade afegã é terrivelmente hierarquizada.
Para o Ocidente, que compartimentou separadamente religião e política, é como se o Talibã tivesse características da Idade Média. Mas, não é um elemento deslocado no mundo da Globalização Neoliberal. Na verdade, é uma reação às disputas imperialistas na região. O conceito de nacionalidade não faz sentido para os militantes, pois o primordial é o Islã. Têm elevado senso de hierarquia, no extremo oposto da democracia burguesa. Como vem sendo alardeado pela grande mídia, não concebem equidade entre gêneros e oprimem ostensivamente as mulheres. Não aceitam a cobrança de juros.
Talibã serve aos poderosos (Khans)
A Al-Qaeda e o Estado Islâmico, assim como o Talibã, são resultados do imperialismo no Afeganistão. Antes dos Estados Unidos, o Império Britânico mostrou suas garras por lá. O que diferencia o Talibã dos dois outros movimentos é a forma como compreende a jihad, não é um imperativo (Essa guerra santa é exercida através do poder local). A dita “Esquerda” de vocação stalinista confunde essa característica com nacionalismo, o que está errado.
O ataque às Torres Gêmeas em Nova York em 11 de setembro de 2001 foi, por exemplo, um episódio da guerra santa (jihad) implementada pela Al-Qaeda. O Talibã não é opositor dos demais movimentos islâmicos e protegeu Bin Laden. Esse foi o pretexto para os Estados Unidos atacarem esse governo, já que não servia mais (após cumprir a tarefa de contribuir para a saída da ex-URSS).
A retirada das tropas dos EUA não foi, portanto, uma vitória do nacionalismo afegão. Já a burca, tão criticada, não é uma invenção Talibã. É costume dos pashtuns que vem sendo imposto aos territórios mais reativos ao Talibã. Onde é melhor recebido, a burca nem é tão cobrada. Logo, trata-se da aplicação de uma concepção de mundo totalizadora e reacionária.
Mesmo apresentando-se como inimigo dos Estados Unidos, o Talibã não é anticapitalista. A sociedade afegã é repleta de elementos pré-capitalistas bem conjugados com a essência do sistema: a desigualdade social e a exploração do homem pelo homem.
O Talibã é financiado pelo tráfico de drogas, como o ópio, por extorsões e sequestros. A exploração ilegal de recursos naturais afegãos através, por exemplo, da mineração também é uma fonte de recursos. Além disso, recebe doações de apoiadores ricos. Nada que vá pôr em risco a miséria de boa parte do mundo, tão importante para o sistema capitalista.
O Talibã mandou as tropas norte-americanas embora. Mas, não fez revolução. O Afeganistão não é o Vietnã. Lá, nos anos 60, guardadas as devidas diferenças, os trabalhadores estavam em luta por seus interesses, pelo Socialismo. Expulsaram o imperialismo, expropriaram a burguesia e chegaram à economia planificada. Assim, como há 43 anos, parte dos afegãos também ousou estar. O imperialismo não tolerou isso e fomentou a criação de milícias fundamentalistas.
Ainda não chegou o tempo dos afegãos realizarem o sonho de seus estudantes que, nos anos 70, gritavam “morte aos Khans” (senhores). A luta final, por uma terra sem amos, terá de derrotar o Talibã.