Gabriel Boric contra Antonio Kast
A grande notícia de 2021 foi a eleição de Gabriel Boric como presidente do Chile. Candidato pela “Aliança Apruebo Dignidad (Aprovo a dignidade)”, coligação formada por vários partidos ditos de esquerda, incluindo o Partido Comunista.
O Chile, em 1973, ficou marcado pelo golpe liderado por Pinochet, responsável por uma das ditaduras mais sanguinárias com mais de 30 mil mortos, desaparecidos e outros tantos milhares de torturados.
Gabriel Boric foi uma liderança das grandes manifestações estudantis em defesa da Educação Pública de 2011. Também participou da grande rebelião social de 2019, uma das manifestações mais importantes do Continente e protagonizada pela juventude.
Disputou o segundo turno contra Antonio Kast, um candidato de extrema-direita católica. Defensor da ditadura de Pinochet, de manutenção das privatizações da Previdência Social e Educação, contra a descriminalização do aborto com a revogação da Lei que garantia o direito e também contra, segundo suas palavras, a “ditadura gay”.
Mais uma questão muito importante e que certamente explica seu pensamento e suas propostas: sua família tem estreita ligação com o nazismo, inclusive seu pai foi soldado do exército nazista e membro do partido de Hitler.
Caso, com essa descrição, você tenha lembrado de Bolsonaro, é isso mesmo. Estão no mesmo campo político. E chegou a declarar que admira Bolsonaro.
A extrema-direita foi derrotada eleitoralmente, mas ainda está viva
Parece-nos que a questão mais importante a ser comemorada é a derrota da extrema-direita, principalmente no Chile pois, enfraquece setores reacionários e de extrema-direita do Continente, como no Brasil com Bolsonaro e Moro.
A necessidade que a classe trabalhadora, sobretudo os setores mais jovens, sentiu de derrotar essa ameaça de extrema-direita e tudo que representa explica a grande participação popular nas eleições, uma das maiores das últimas décadas. Mesmo sem ser obrigatório o voto mais de 55% participaram.
É a continuidade de um processo que já tinha se manifestado na Argentina, Bolívia, Peru e mais recentemente em Honduras. Cada um com suas especificidades, mas todos impuseram derrotas eleitorais que enfraquecem esse setor de certa forma.
E é uma vitória eleitoral importante, no entanto, não podemos perder de vista que as eleições não têm força de eliminar a extrema-direita da cena política. Um bom exemplo foi a Argentina nas eleições parlamentares desse ano, quando a extrema-direita e a “direita clássica” tiveram a maioria de votos.
Somente a luta direta nas ruas, a imposição de um programa político e econômico a favor da classe trabalhadora podem demonstrar como a extrema-direita é inimiga e, principalmente, construir formas organizativas entre explorados que derrotarão esse perigoso setor político.
A burguesia tem incentivado a existência de agrupamentos reacionários (como o bolsonarismo, MBL, Vem pra rua, etc), pois podem utilizá-los nos momentos de convulsão social. Por isso, é necessário combatê-los todos os dias e não somente nas eleições. Setores eleitoreiros ditos de esquerda se negam a fazer esse enfrentamento em nome de uma “paz social”, mas sabemos que isso para a extrema-direita é a classe trabalhadora e o movimento social derrotados.
Nesse sentido, o golpe militar no Chile e seus sucessivos governos de “centro-esquerda” muito nos ensinaram e permanecem pedagógicos, precisamos de muitas lutas para derrotar o pinochetismo que se mantém vivo e atuante na política chilena.
O que Boric defendia? E agora?
Boric se apoiou principalmente nas reivindicações das manifestações de 2019, essas foram as referências. Como programa econômico defendia a criação de impostos sobre as grandes fortunas, proteção social e direitos como o acesso universal à Saúde, revisão do sistema previdenciário a ser administrado por órgão público (atualmente é por empresas privadas, as AFP – Administradoras de Fundos de Pensão), cobrança de royalties das mineradoras, sistema educacional público gratuito e de qualidade e defesa do meio ambiente.
Também defendeu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a descriminalização do aborto, medidas de igualdade gênero, dentre outros. São bandeiras políticas progressistas e que expressam o sentimento de centena de milhares de chilenas e chilenos que saíram às ruas nos últimos anos.
Mas, diante das pressões contra o “discurso radical” e buscando ampliar o arco de alianças, foi dando sinais de moderação. Mudou o jeito de vestir, passou a trabalhar com a formação de um governo “mais amplo” e abrir mão de algumas de suas propostas. Incorporou economistas ligados aos governos de Bachelet e Lagos (coligação de “centro-esquerda” chamada Concertação, que já governou o Chile por mais de 20 anos na queda do regime de Pinochet).
E já conhecemos essa parte da história. Como vai governar “pelos canais institucionais”, onde setores de direita têm peso importante (no Senado controla metade das cadeiras), vai fazer concessões para setores tidos como os “mais moderados”. Ou seja, a tendência é “negociar” tudo e exigir do povo que tenha paciência.
Seríamos surpreendidos se o caminho a ser trilhado pelo governo de Boric fosse outro, isto é, se apostasse na mobilização popular para enfrentar “os de sempre” ou “a de sempre” (a escrota burguesia). Mas, sabemos que vai repetir as experiências e ilusões fracassadas em “humanizar” o capitalismo pelo Estado do capital.
Outro fato, que disse muito sobre Boric, foi a sua participação no acordo “Pela paz e Pela Nova Constituição” – iniciativa do governo Piñera e apoiada por todos os partidos – que levou o Chile a essa situação.
O objetivo do acordo, na verdade, era desviar a rebelião popular para o campo da institucionalidade. Apesar de seu agrupamento ter sido contra a assinatura, Boric o fez em “caráter pessoal”, que lhe rendeu uma sanção partidária. O PC também se retirou dessas negociações.
Importante frisar que foi em um momento de profunda crise social e o movimento operário dava sinais de luta, fato confirmado com a importante Greve Geral de 19 de novembro de 2019.
Quanto a libertar os presos políticos da guerrilha “Frente Patriótica Manuel Rodriguez”, respondeu que não os dará nenhum tipo de indulto.
Há saídas por dentro do Estado?
Nenhuma forma econômica burguesa pode resolver essa crise estrutural. Nem o Estado Social, nem desenvolvimentista, nem neoliberal. Estamos em uma crise econômica e social de caráter sistêmica, global e incontrolável. Não há governo burguês que queira ou consiga controlá-la. Por isso todos traem, conscientemente, suas promessas eleitorais e seus eleitores.
Foi e é no Chile, foi e vai ser no Brasil. É em qualquer parte do mundo. A saída dessa crise pela classe trabalhadora somente poderá ocorrer com a ruptura com o sistema do capital. A solução está fora do sistema capitalista.
Não temos presença política no Chile, mas acompanhamos sua luta de classes e do nosso Continente, a história já mostrou por onde não devemos ir.
Sonhar o Chile como um “Estado de bem-estar social”, como foi na Europa, não passa de ilusão, pois é um país dependente e exportador com boa parte de sua riqueza social produzida e entregue para a burguesia imperialista.
Os milhões de votos que Boric recebeu são de esperança na mudança. Entendemos perfeitamente isso. Os chilenos sofrem na pele com o neoliberalismo (foi o primeiro país na América a aplicar integralmente essas ideias e políticas) e não aguentam mais a falta de aposentadoria, de serviços públicos, moradia, etc.
É provável que Boric tenha boas intenções, mas isso não basta. O atendimento das reivindicações da classe trabalhadora chilena (pode ser do Brasil, Argentina, etc.) se dará com a ruptura com o imperialismo e a burguesia chilena. A riqueza produzida ou atende as necessidades da população ou permanece com os burgueses.
É um processo estrutural do capitalismo. Por isso, não podemos nos iludir. Só a luta da classe trabalhadora vai produzir mudanças reais e verdadeiras na vida do povo chileno.
E em todo esse processo ainda tem uma contradição importante: os pontos progressistas do programa político de Boric a burguesia chilena não vai aceitar pacificamente. E, mais cedo ou mais tarde, estará diante de escolher em recuar e continuar “mais do mesmo” ou radicalizar e chamar a mobilização da classe trabalhadora para enfrentar a burguesia e o imperialismo.
Boric recebeu apoio de setores da burguesia porque é a grande esperança de estabilizar a situação política chilena. Foi isso que se propôs com a autoridade adquirida nas mobilizações. E é o que a burguesia precisa e quer.
Aqueles que insistem em seguir esse mesmo caminho somente têm construído novas tragédias. O que vai decidir é o papel da classe trabalhadora, em especial do setor operário. O desenvolvimento de organismos de luta, a conscientização de que pelo Estado nada vai ser mudado e as mobilizações permanentes podem apontar para mudanças reais na situação política chilena.
Com todas as contradições, no próximo período, a tendência é o Chile ser o centro da luta de classes no Continente.